Há 50 anos era escrito um dos poemas fundamentais da literatura brasileira: Poema Sujo de Ferreira Gullar. Até hoje a obra segue sendo lida, relida e servindo de instrumento para pensar o Brasil e a nossa literatura.
Um poeta em exílio e ascensão das ditaduras no cone sul
Devido à ditadura militar instaurada no Brasil, Ferreira Gullar foi obrigado a deixar o país. Ele, então, viaja por vários países, entre eles União Soviética, Chile e Argentina. Durante sua permanência no Chile, em 1973, o poeta assiste à ascensão da ditadura chilena, com a derrubada do governo Salvador Allende. Com o início da ditadura no Chile, Gullar vai para a Argentina. Em 1975, percebe a movimentação que levará à instauração da ditadura argentina. Temeroso, ele tenta deixar o país e ir para a Europa, no entanto, com seu passaporte vencido, e posteriormente inutilizado, se vê sem saídas.
O testamento de uma vida
Diante de um cenário de incerteza e medo, exilado em uma Argentina, que assim como já tinha acontecido com Chile, Bolívia, Uruguai e Brasil, estava para cair nas mãos dos militares, o poeta resolve escrever uma espécie de testamento poético.
A princípio, a obra seria uma novela narrando sua vida, no entanto, após duas tentativas, nas quais chegou a escrever mais de 50 páginas em cada, o escritor se vê diante da impossibilidade de uma obra em prosa. É nesse ponto que o poema começa a ganhar forma. Através daquilo que acreditava que seria seu último poema, sua obra final, Ferreira Gullar queria “vomitar” o poema de uma vida inteira.
A escrita do poema
Iniciada sua escrita, o autor se dá conta de que aquele seria um poema longo, algo único na sua obra. A princípio, a ideia era escrever um poema lírico, curto, no entanto, pouco a pouco, o poema se impõe. Como contaria anos depois, em uma espécie de estado de comoção e descoberta, Gullar escreveu Poema Sujo durante 4 meses.
Sobre o processo de composição do poema, conta o poeta: : “De repente, se rompe essa parede e se revela o lado misterioso inexplicável do mundo, a qualquer momento. Você entra nesse estado de querer dizer o inaudito, o que não se sabia (…) ficar nesse estado durante meses, isso aí, realmente nunca tinha me acontecido”
“(O poema) foi sendo feito, eu fui sendo arrastado, e evidentemente, dirigindo na medida em que o poema surgia, eu ia organizando o poema.”
Dentro do poema
Poema sujo é um poema que trafega entre a experiência individual, única e intransferível do poeta, e aquilo que é experiência compartilhada na família, na cidade e como ser no mundo. Assim, mistura sensações ao cantar, o seu sentir-se no mundo, seu olhar para o próprio passado, suas reflexões sobre a morte e seu corpo. Ainda que haja no poema movimentos e seja possível identificar suas partes, o poeta coloca de maneira inseparável a si mesmo no que existe de mais íntimo, aquilo que o constitui e o mundo externo a ele.
Da música de Villa Lobos à cidade abandonada com as coisas apodrecendo dentro dela, o poema lança uma miríade de reflexões, do Maranhão da sua infância às coisas vistas já na maturidade, lançando imagens, reflexões e sensações ambíguas, muitas vezes sem que haja uma transição clara entre as partes.
Se o poeta não escreveu sua novela biográfica, por outro lado, em Poema Sujo o desejo de contar tudo se cumpre. Forma e conteúdo se fundem no que é sem dúvidas um testamento do que é/foi o mundo pelos olhos do poeta.
Publicação e retorno ao Brasil
Ferreira Gullar então mostra o poema para seus amigos na Argentina, que o aconselham a publicar. A obra é então levada ao Brasil na forma de gravação, na voz do próprio do escritor, e em 1976 é publicada.
Se, ao conceber a ideia do poema, o poeta acreditava que esse seria seu último poema, a sua escrita e repercussão garantiram a ele um retorno para o Brasil de maneira segura. Pois dada a repercussão, seria um escândalo se algo acontecesse a ele. Respaldado pela repercussão do poema, Gullar voltou ao Brasil e Poema Sujo se consagrou como um dos poemas fundamentais da nossa literatura.
50 anos depois, a obra segue sendo lida, relida e servindo de instrumento para pensar o Brasil e a nossa literatura. Sendo, tanto um representante da obra do movimento concretista e da obra de Ferreira Gullar, quanto uma obra única e diferente de tudo o que foi produzido na época. O poema acabou realizando, ainda que de maneira diferente do planejado, o seu desejo de Biografia poética.
Leia Também: Ngũgĩ Wa Thiong’o e Mia Couto: Os assuntos que nunca deixam de nos tocar
Poema Sujo, de Ferreira Gullar
Companhia das Letras, 2016
112 pp.
