Jerónimo Pizarro, professor, pesquisador e organizador da nova edição das ‘Cartas de Amor’ de Fernando Pessoa diz querer acreditar que organizou a edição mais completa da correspondência amorosa do poeta português até agora.

A primeira edição das “Cartas de Amor”, de Fernando Pessoa, surgiu nas livrarias no fim da década de 1970, com organização de David Mourão-Ferreira. Naquele momento, revelou-se ao mundo o complexo universo particular de um dos nomes mais enigmáticos da poesia mundial.
Quase 50 anos depois deste primeiro lançamento, nos deparamos com uma nova versão da correspondência amorosa de Pessoa, mais completa e com novas imagens. Acontece que a pesquisa no acervo de Fernando Pessoa deve durar ainda algumas décadas. Afinal, apesar da vida curta, o autor de ‘Mensagem’ produziu incansavelmente durante as duas últimas décadas da sua vida. Essa produção inclui um imenso acervo de correspondência, anotações e cartas de amor.
‘Quero acreditar que esta é, até agora, a edição mais completa das Cartas de Amor’, conta Jerónimo Pizarro

Para produzir uma nova versão expandida e comentada de “Cartas de Amor”, Jerónimo Pizarro, professor de literatura portuguesa na Universidade dos Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia e Prémio Eduardo Lourenço (2013), prezou pela totalidade do conteúdo, o que inclui também reunir uma série de documentos e paratextos que nos ajudam a compreender o contexto de cada uma das cartas:
Não houve propriamente uma seleção no sentido de exclusão, mas sim um esforço de inclusão: a proposta foi reunir todos os materiais disponíveis, incluindo muitas cartas esquecidas ou até hoje pouco conhecidas, intercalando-as com documentos que ajudam a contextualizá-las. As cartas de Pessoa deviam ser apresentadas em sua totalidade — cuidadosamente revistas, anotadas e, sempre que possível, relacionadas com rascunhos e fragmentos que iluminem as intenções e hesitações do autor. Se houvesse mais cartas ou mesmo registos dos telefonemas entre Pessoa e Ofélia, estes também teriam sido integrados.
A edição, que agora sai pela Tinta-da-China, reúne, junto às cartas, imagens, fotografias e documentos que compõem um panorama de quem era Fernando Pessoa apaixonado. Soma-se a isso, muitas notas de rodapé e até mesmo informações topográficas: “Quero acreditar que esta é, até agora, a edição mais completa das Cartas de Amor”, título que Pizarro resolveu manter da publicação original organizada por David Mourão-Ferreira e publicada em 1978.
O resultado é um livro que, por vezes, se aproxima de um álbum ilustrado da vida e da obra de Fernando Pessoa. Essa decisão editorial parte da convicção de que, se a biografia de Pessoa é hoje múltipla e internacional, a sua obra também o é — e deve continuar a sê-lo. Pessoa queria ser plural como o universo; esta edição tenta responder a esse desejo, oferecendo um conjunto de textos cuidadosamente estabelecidos que possam renovar e multiplicar não só os estudos sobre Pessoa, mas também os da multidão de pessoas que os fazem.
Quem foi ‘Madge Anderson’, considerada o ‘último amor de Fernando Pessoa’?
Quem conhece minimamente a biografia de Fernando Pessoa, sabe, ao menos, o nome de Ofélia Queiroz, amada mais famosa do poeta e com quem ele teve um breve noivado. Já na edição de 1978, Ofélia era a grande estrela, para quem a maior parte da correspondência de Pessoa era direcionada.
No entanto, ela não foi a única. A partir das pesquisas de José Barreto, mais precisamente do artigo “A última paixão de Fernando Pessoa”, publicado originalmente em 2017 e com atualizações em 2022, se conhece Madge Anderson, “uma figura envolta em mistério”, como contou Pizarro à revista O Odisseu. Trata-se de uma recente descoberta em uma correspondência que aconteceu no último ano de vida de Pessoa.
O nome de Madge aparece em cadernos do poeta da época, juntamente com poemas de amor escritos em inglês, e sabemos que um tio dela se encontrou com Pessoa em Lisboa em 1934, deixando-lhe boa impressão. Madge parece ter sido uma das últimas figuras femininas importantes na vida do autor — uma presença discreta, mas suficientemente marcante para ser recordada em cartas e poemas que só décadas mais tarde começariam a revelar o seu papel.
De acordo com Pizarro, Madge era irmã de Elieen Anderson que, por sua vez, era esposa do meio-irmão de Pessoa, tornando-a, assim, cunhada do poeta. Sua origem era irlando-escocesa, mas ela vinha do seio de uma família britânica conservadora. Em determinado momento, a inglesa visita Lisboa e tem contato com Pessoa, o que despertou ciúmes em Ofélia. Conta Pizarro:
Casada ainda jovem com um inglês, Madge fez várias viagens a Portugal entre 1929 e 1935, período em que já se encontrava afastada do marido. Foi durante essas estadias que se terá aproximado de Fernando Pessoa, o que despertou ciúmes em Ofélia Queiroz, sua antiga e breve noiva, que na época havia reatado o contato com o poeta. Ofélia manifestou reservas quanto à presença da inglesa e mostrou-se preocupada com a possibilidade de Pessoa se deixar seduzir por alguma “inglesinha”. Embora não haja registo de um encontro entre Madge e Pessoa em 1935, há fortes indícios de que estiveram em contacto próximo noutras ocasiões.
‘Pessoa parecia viver uma tensão entre o desejo de ser amado e a necessidade de ser livre’, diz Jerónimo Pizarro
Fato é que conhecer as cartas, sobretudo as ‘Cartas de Amor’, de Fernando Pessoa, parece ser também uma chave interessante de interpretação da poesia do autor. Por exemplo, conhecer quem foi Fernando Pessoa apaixonado ajuda a compreender sua relação com a poesia e com seus heterónimos.
Pessoa parecia viver uma tensão entre o desejo de ser amado e a necessidade de se manter livre para a criação literária e para a multiplicidade de personalidades que habitavam a sua escrita. A “intromissão” do heterónimo Álvaro de Campos no relacionamento, com poemas como “Todas as cartas de amor são ridículas”, mostra como a sua experiência amorosa se tornou também matéria poética, marcada por ironia, dor e autodefesa.
Para o professor, a relação entre Pessoa e Ofélia demonstra que o poeta parecia profundamente interessado – ou melhor, seduzido – pela possibilidade de uma vida romântica a dois, mas havia algo que o impedia de viver plenamente esse amor e de cumprir a fantasia de uma vida doméstica. Isso mostra o quanto ele era dividido:
Fernando Pessoa apaixonado era um sujeito contraditório: alguém que, apesar de amar, resistia ao amor como entrega total, mantendo-se fiel a uma vida interior povoada por sonhos, pensamentos e heterónimos. A sua paixão, por isso, foi tão verdadeira quanto impossível — vivida tanto no corpo como no papel.
Certamente, a partir dessa nova edição, muitas outras novas discussões vão surgir em torno da vida pessoal de um dos principais poetas da língua portuguesa. Não podemos negar que a figura de Pessoa, seus heterônimos e textos desconcertantes, é uma das mais misteriosas da literatura. Saberemos tudo um dia? Não sabemos. Mas os esforços de pesquisadores como Jerónimo Pizarro são fundamentais nesse quebra-cabeças chamado Fernando Pessoa.
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“Cartas de amor”, de Fernando Pessoa, edição de Jerónimo Pizarro
Tinta da China Brasil, 2025
208 pp.
R$ 74,90
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