O escritor manauara Milton Hatoum é homenageado na edição de 2025 da Festa Literária Internacional da Mantiqueira e é um dos grandes nomes da nossa literatura no cenário internacional. Por que não indicá-lo ao Nobel de Literatura?

Há alguns dias, publiquei um texto falando de Conceição Evaristo, a literatura negra e a insistência que nós temos em desejar a validação por meio das instituições oficiais. Naquele texto, eu digo que não precisamos de nenhuma casa, e que nenhum prêmio é capaz de ditar aquilo que é bom ou não é. Nesse sentido, pode parecer contraditório agora a escrita deste outro texto. Talvez assim seja mesmo (não sou de negar minhas contradições). Hoje então, quero falar de um Nobel de Literatura para chamar de nosso.
De fato, o Prêmio Nobel de Literatura, entregue pela Academia Sueca, não é o que faria da nossa literatura excepcional, coisa que já é. Não precisamos de um Nobel para validar nossa produção. Por outro lado, no jogo da arte, é preciso gingar com essas instituições para promover mais acesso, para fomentar mais produções, para garantir mais recursos públicos e etc.
Por exemplo, o Oscar para “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles, certamente põe o nosso audiovisual em outro lugar no mundo e até mesmo dá mais autoestima aos nossos cineastas. Além, é claro, do desejo de competição, de se desafiar em fazer mais (e melhor), aspectos que eu considero importantes.
Chegamos então à questão: por que não um Nobel de Literatura se temos uma produção tão vasta, tão boa e tão consistente? Existem entraves políticos que parecem impedir o Nobel brasileiro. Até porque, temos diversos Nobeláveis: Conceição Evaristo, Chico Buarque, Adélia Prado e… Milton Hatoum, autor que, na minha concepção, é o que tem mais chances dentre os listados (não porque seja melhor que os demais, mas sim por motivos que discuto neste texto).
Como conseguir um Nobel de Literatura?
Existem alguns fatores que nos impediram de alcançar um Nobel anteriormente. Segundo registros divulgados pela Academia Sueca (que sempre divulga os finalistas do Prêmio apenas 50 anos depois da entrega), o que chegou mais perto (que se saiba) foi o baiano Jorge Amado.
Segundo reportagem da BBC Brasil, Jorge esteve entre os cotados para o Nobel de Literatura entre os anos 1967 e 1971, mas perdeu todas as vezes. Nesses anos, ganharam Miguel Ángel Asturias (Guatemala), Yasunari Kawabata (Japão), Samuel Beckett (Irlanda), Alexandre Soljenítsin (Rússia) e Pablo Neruda (Chile). Assim, Amado foi o autor brasileiro que mais figurou na lista do Nobel e houve um motivo para isso.
Não podemos dizer que, na época em que concorreu, Jorge Amado era o autor brasileiro mais importante. Vale lembrar que ele estava vivo e produzindo nessa época com nomes como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector (outros autores que também figuram entre os cotados ao Nobel segundo documentos da Academia Sueca). Isso porque o prêmio não é, necessariamente, sobre qualidade literária. Claro, a qualidade do texto influencia e muito, mas não é o único fator. É preciso que o autor em questão consiga representar o seu tempo, representar princípios do seu país, da sua gente. É preciso que ele escreva sobre as dores e amarguras e circule o mundo como um protótipo da literatura de determinado país. Isso, sem sombra de dúvidas, Jorge Amado fez.
Amado foi talvez o escritor brasileiro que mais circulou no mundo no século XX. Ele estava interessado em falar do seu país dentro de uma estética característica, apropriando-se dos símbolos de sua terra para a construção de uma identidade própria. Tudo isso, é claro, com muita criticidade. Claro, podemos questionar os métodos como o baiano fez isso e hoje a sua obra é revisitada de forma crítica, entretanto, para a época, não podemos, de forma alguma, negar seu caráter vanguardista.
Tal caráter, considero, encontra-se em Milton Hatoum, autor capaz de transitar entre diversos temas, com a qualidade literária necessária para um vencedor da honraria da Academia Sueca e, mais que isso, com a representatividade necessária para tal.
‘Milton Hatoum é o espírito do tempo’, diz jornalista e escritor Gustavo Rossetti Viana

Pensando na possibilidade de indicar Milton ao Nobel (lembrando que as indicações são feitas por instituições nacionais, como a Câmara Brasileira do Livro ou a Academia Brasileira de Letras), me dediquei a conversar com algumas pessoas sobre essa provocação.
Seria possível um Nobel para Milton Hatoum? É possível começar a pensar nesse sonho?
Para o escritor e jornalista Gustavo Rossetti Viana, Milton Hatoum para o Nobel não é nenhum absurdo. O escritor, autor de “Canceriano sem lar” e jurado do Prêmio Jabuti, está na FLIMA que homenageia Hatoum este ano. À revista O Odisseu, ele falou um pouco sobre essa possibilidade:

“Eu vim na FLIMA para fazer uma roda de conversa e falar sobre distopias. Mas não seria distopia o Milton ganhar um prêmio desse porte, seria uma realidade. Isso tem tudo a ver com o que a FLIMA vem dizendo sobre ‘pertencimentos e deslocamentos’, sobre o caráter e o espírito do nosso tempo, seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Rússia, na Ucrânia, na Síria. Por ser descendente de Libaneses, por representar a cultura, a Amazônia (ainda mais agora que nos aproximamos da COP-30, primeira COP em território amazônico), por tudo isso: não seria um absurdo Milton Hatoum ganhar o Nobel, seria uma realidade.”
Isso se relaciona muito com algo que eu conversei com uma das curadoras da FLIMA, há algumas semanas quando anunciaram Hatoum como autor homenageado. Cristiane Tavares, doutora em educação pela Unifesp e mestra em literatura e crítica literária pela Unicamp, destacou a relação entre o autor homenageado e o tema “deslocamentos e pertencimentos” para a revista O Odisseu:
“A obra de Milton Hatoum dialoga de forma muito contundente com o tema da FLIMA 2025: Deslocamentos e pertencimentos. Tanto no ponto de vista ético, quanto esteticamente falando. Há, na poética deste autor, provocações sobre as relações entre identidade, território, poder e privilégio, opressão e liberdade. Uma voz, sem dúvida, indignada com o seu tempo e irmandade com desejos de justiça e paz”.

Não por acaso, Milton Hatoum é hoje um dos escritores brasileiros mais lidos no mundo! Sua obra não apenas transita no cenário nacional, mas ele (que também já foi professor de literatura brasileira na Federal do Amazonas e em Berkeley) é lido na Europa, Oriente Médio e África. Em 2018, ganhou o Prix Roger Callois pour la Littérature Latino-Américaine, na França, pelo conjunto da obra. Hatoum circula no mundo e ele mesmo parece ter noção disso. Em entrevista aos pesquisadores Lohanna Machado e Wanderley Corino Nunes Filho (2018, leia aqui), ele falou um pouco sobre a recepção de sua obra no mundo e sobre as comparações com outros autores estrangeiros:
Cada país tenta relacionar o livro traduzido com a sua cultura. Na França, o resenhista do ‘Le Monde’ citou a influência de Proust no ‘Relato de um certo Oriente’. O jornal inglês ‘The Guardian’ falou na influência de uma novela de Henry James no ‘Dois irmãos’. Na Itália, como é natural, a crítica mencionou o mito como ponto de partida para esse romance. Mas geralmente a influência da literatura brasileira não é mencionada no exterior. Essa é a vantagem da crítica latino-americana, que conhece a nossa literatura e também as literaturas estrangeiras. Devo muita coisa à leitura de obras de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drummond, Bandeira, mas poucos jornalistas literários estrangeiros têm familiaridade com a obra desses autores. Então eles escrevem uma impressão de leitura a partir do repertório deles, como se Machado não existisse. E o diabo é que eu não teria escrito o ‘Dois irmãos’ sem a leitura de Esaú e Jacó.
‘Um Nobel para Hatoum? Merecido e desejável’, escreve Stefania Chiarelli, professora da Universidade Federal Fluminense
Em busca de escrever essa reportagem sobre Milton Hatoum e a necessidade (perceba que agora já trato como demanda) de indicar Milton Hatoum para o Prêmio Nobel de Literatura, cheguei a Stefania Chiarelli, professora da Universidade Federal Fluminense que é leitora entusiasta da obra de Hatoum. Chiarelli doutorou-se com uma tese de título: ‘Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum’ na PUC-RIO e já escreveu sobre o autor algumas vezes e até mesmo mediou mesas com o manauara (veja Stefania Chiarelli e Milton Hatoum na UFF aqui).
Para a professora, Hatoum é um dos poucos autores no Brasil que conseguiu o feito de unir crítica e leitores na unanimidade em torno de sua qualidade literária. “Em primeiro lugar, é importante destacar que a obra de Milton Hatoum consegue, em um Brasil de poucos leitores, ganhar o aplauso da crítica especializada e o reconhecimento do público. Por si só, isso já é uma façanha” disse à revista O Odisseu.
Mas a obra do escritor em questão consegue ir além da qualidade incontestável. Para Chiarelli, a atualidade de sua escrita coloca o autor em outro patamar, uma figura ímpar no cenário nacional brasileiro. Sobre isso, ela diz:

“A temática sempre atual, como a questão dos deslocamentos migratórios e os dilemas familiares, vai direto no coração dos leitores, fazendo com que a grande qualidade literária de sua prosa alcance muitas gerações, lembrando que ele publica há mais de trinta anos: em 2024 se comemorou os 35 anos de ‘Relato de um certo Oriente’, livro a ser degustado sem pressa. ‘Dois irmãos’, romance premiadísssimo e publicado nos anos 2000, se desdobrou em série televisiva, peças de teatro e uma HQ premiada.”
Como já mencionamos anteriormente, a questão da migração é decisiva na obra de Hatoum, que vem de uma família de imigrantes. Milton tem pai libanês e mãe manauara. Cresceu num ambiente repleto de influência que ia da cultura libanesa às línguas indígenas na capital do Amazonas. Em diversas ocasiões, ele mencionou como essas influências cruzadas o ajudaram a construir sua estética enquanto escritor.
Revirando a ditadura
Outro fator importante na vida e obra de Milton Hatoum é a escrita sobre a ditadura militar. O escritor viveu o período sombrio da ditadura e, inclusive, foi perseguido pelo DOPS, a polícia de perseguição política dos militares, ainda enquanto estudante na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde estudou. O tema da ditadura é revisitada na trilogia “O lugar mais sombrio”, que Hatoum ainda não completou. Sobre isso, Chiarelli escreve:
“Sobre a escrita que busca recuperar traumas coletivos, em vínculo estreito com a dimensão ética da memória, no conjunto de sua obra também se fazem presentes romances que assumem o compromisso de reelaborar as cicatrizes da ditadura, como se lê no romance de formação ‘A noite da espera’ (2017), seguido de ‘Pontos de fuga’ (2019), narrativas que entrelaçam arte, política e ideologia, em que o memorialismo hatoumiano dá a ver os sonhos e desilusões do protagonista Martim. Os dois volumes integram a trilogia ‘O lugar mais sombrio’, ainda em curso.”
Esses aspectos apontam para uma dimensão ética da trajetória do autor, ética que aparece tanto na sua escrita quanto na sua atuação como intelectual público:
“Por fim, vejo uma coerência com o teor político de sua obra, expressa no posicionamento como intelectual público, tomando posição diante de questões prementes, a exemplo das atrocidades cometidas por Israel contra o povo palestino. Hatoum não hesita em tomar a palavra para se colocar como consciência de sua época. Isso não é pouco e requer coragem.
Um Nobel para Hatoum? Merecido e desejável.”, completa Stefania Chiarelli.
Uma influência para os novos escritores
Por fim, é preciso dizer como Milton Hatoum, um autor em plena atividade, também se mostra já uma influência para a nova geração de escritores. Foi justamente isso o que o escritor Tito Leite, autor de títulos como ‘Jenipapo Western’ (Todavia) me contou quando o convidei para falar sobre Hatoum para essa reportagem.
Leite reconhece essa influência de Hatoum sobre a escrita contemporânea, colocando-o como uma dessas referências que delimitam àquilo a produção da atual literatura brasileira:
“Se tem um autor brasileiro que merece o Prêmio Nobel de Literatura, esse escritor é o Milton Hatoum. Com uma narrativa não linear, no livro ‘Os dois irmãos’, ele faz algo interessante quando o narrador-testemunha (Nael) em alguns momentos da narrativa ganha o status de narrador-personagem. De modo especial, quando Nael conta a história da sua própria vida. O livro ‘Dois irmãos’ é uma das grandes obras da nossa literatura. No seu terceiro romance, ‘Cinzas do Norte’, é incrível a forma como ele aborda as questões do Norte e com profundidade explora a temática da ditadura. A obra de Hatoum é também um grito de resistência.”

O que falta para indicar Milton Hatoum ao Nobel de Literatura?

Os trâmites em torno de uma indicação ao Nobel de Literatura tem muito mais a ver com a promoção de políticas de cultura e tradução do que com qualquer outra coisa. Digo que Hatoum é nosso nome com mais chances porque ele consegue reunir em sua obra esse fator da atualidade em torno das questões políticas, numa obra que é profundamente lúcida, e também o fator da internacionalização da sua obra, sendo já um nome que circula como exemplo de qualidade literária em todo o mundo.
Apostar nossas fichas em Milton Hatoum não é dizer que ele merece mais que os demais, mas sim que, pensando politicamente, temos uma oportunidade de fazer uma campanha que praticamente já está posta: Hatoum, de certa forma, já é nobelável. Qualquer esforço feito por agentes da cultura, da imprensa e da academia, apenas reforçariam os olhares que já estão sobre ele.
Leia Também: Para não perder o bonde da história: Conceição Evaristo, a Academia Brasileira de Letras e as literaturas negras

