‘Thomas Mann e o nosso tempo’, por João Pedro Cachopo

150 anos de Thomas Mann: Se A montanha mágica ainda tem muito a dizer ao nosso tempo, não é porque lhe assenta como uma luva, mas porque o sacode, tal como sacudiu o seu próprio tempo, com uma lucidez e uma franqueza sem concessões.

150 anos de Thomas Mann. Foto: Reprodução.

A 6 de Junho de 2025, celebra-se o sesquicentenário de Thomas Mann, nascido em 1875 na cidade alemã de Lübeck. Toda a sua obra, um testemunho eloquente da turbulência que marcou a primeira metade do século XX, permanece extremamente actual. Talvez isto se possa afirmar sobre toda a sua produção literária, mas é especialmente verdade no caso d’A montanha mágica, romance escrito entre 1912 e 1924, abarcando o período imediatamente anterior, durante e posterior à Primeira Guerra Mundial.

Mas não nos equivoquemos: se A montanha mágica ainda tem muito a dizer ao nosso tempo, não é porque lhe assenta como uma luva, mas porque o sacode, tal como sacudiu o seu próprio tempo, com uma lucidez e uma franqueza sem concessões. O romance relaciona-se com o seu tempo na modalidade da intempestividade, não da adequação. Por outras palavras, não é apenas pelo facto de lidar com temas actuais – guerra latente, aceleração tecnológica, radicalização política – mas pelo modo como os aborda que ele permanece instigante.

Lê-se relativamente cedo no romance:

“O indivíduo pode ter na ideia diversos objectivos, fins, esperanças, perspectivas pessoais, às quais vai buscar o impulso para um esforço e actividade mais intensos; quando o que é impessoal à sua volta, o próprio tempo, está, no fundo, despojado de esperanças e perspectivas, por maior que seja a vitalidade exterior, quando o tempo se lhe dá a conhecer secretamente como sem esperança, sem perspectivas e sem norte e opõe um silêncio oco à questão, formulada consciente ou inconscientemente, mas, seja como for, formulada, de um último sentido, mais do que pessoal, absoluto, de todos os esforços e actividades, então, justamente nos casos de uma humanidade mais íntegra, há-de ser quase inevitável um certo efeito paralisante dessa circunstância.”

Foto: Ullstein Bild/Getty Images

O narrador tem em mente Hans Castorp, o protagonista do romance, e o seu tempo, mas poderia ser o nosso. Um dos paralelismos que nos aproxima dos tempos de Castorp e de Mann é precisamente o silêncio perante a pergunta: “para quê?” Proliferam convicções, boas e más, e arreganham-se os dentes, mas cada vez mais é evidente o silêncio por trás da balbúrdia. Ora, esse silêncio engole também – começa a ser difícil escondê-lo – não apenas a realidade mas também o ideal de democracia. 

A ascensão de partidos de extrema-direita é global. E dá-se, paradoxalmente, nas urnas, em eleições democráticas. Também em Portugal, há quinze dias, um partido com esse perfil ascendeu, pela primeira vez desde a Revolução do 25 de Abril de 1974, ao segundo lugar em representação parlamentar. Como é possível – suspira-se com desânimo e exaspero – que o “povo” eleja representantes que demonstram tão pouco apreço pela democracia, que encolhem os ombros perante o preconceito e a desigualdade, que relativizam os crimes das ditaduras do passado? Reconhecer que um certo ideal de democracia – desde logo, a confiança na expressão da maioria, cuja voz se se confunde com os slogans de quem a manipula nas redes sociais – está em crise, e que, por isso, é preciso repensá-lo, não é atacar a democracia. É levá-la a sério e recusar-se a pôr a cabeça na areia.

“Como é possível – suspira-se com desânimo e exaspero – que o ‘povo’ eleja representantes que demonstram tão pouco apreço pela democracia

O que fazer? Como pensar? Também a estas perguntas, apesar de a história de Hans Castorp terminar com a guerra, dá o romance, nas suas entrelinhas, se não uma resposta, pelo menos um tom. Em termos políticos, ele assume, se considerarmos que Castorp se esquiva aos seus três mestres – Settembrini, Naphta e Peeperkorn – uma forma aporética, ou mesmo escandalosa. Mas escandalosa num sentido positivo. Afinal, “pedra de escândalo”, em grego, significa obstáculo ou escolho, algo em que se tropeça, obrigando ao desvio e à abertura de novos caminhos. Sobre isto escrevi n’O escândalo da distância: uma leitura d’A Montanha Mágica para o século XXI.

“Eis o escândalo — sob a forma de uma série de perguntas. Como não ceder à prepotência dos extremos sem pactuar com a bonomia do centro? Como distanciar-se do centro sem se abeirar da cegueira dos extremos? Como evitar estas duas posições sem deixar de se posicionar? Como se distanciar no seu tempo, evitando simultaneamente o sectarismo, o cinismo e a desistência?”

Talvez a boa distância – indispensável, em termos políticos, à tomada de posição no seu tempo – não resida nesta ou naquela posição, mas numa disponibilidade permanente para repensar, sem nunca ceder à agressividade e ao dogmatismo, a sua posição. Ou mesmo, indo ainda mais longe e mais fundo, na coragem de reconhecer que o fundamento sobre o qual assentam as alternativas em cima da mesa é frágil e na disposição para o grande labor de imaginar outras.

João Pedro Cachopo é filósofo e musicólogo. Lecciona Filosofia da Música na Universidade Nova de Lisboa, onde é membro do Centro de Estudos Musicais e colaborador do Instituto de Filosofia. Os seus interesses incluem o cruzamento entre estética, política e tecnologia, a relação entre as artes, e questões de performance, dramaturgia e remediação. É o autor de O Escândalo da Distância: Uma Leitura d’A Montanha Mágica para o Século XXI (Tinta-da-China Brasil, 2024), Callas e os Seus Duplos: Metamorfoses da Aura na Era Digital (Sistema Solar, 2023) e de A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital, publicado em Portugal (Documenta, 2020), no Brasil (Elefante, 2021) e internacionalmente, sob o título The Digital Pandemic: Imagination in Times of Isolation (Bloomsbury, 2022). 

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O escândalo da distância: Uma leitura d’A Montanha Mágica para o século XXI, de João Pedro Cachopo
Tinta da China Brasil, 2024
176 pp.

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