Libertar o amor da ideia cultural de troca, faz renascer a pureza desse sentimento, em sua verdadeira dimensão espiritual. Amores correspondidos nos fazem muito felizes, mas nem por isso, amar sem ser amado deve nos entristecer.

No poema “Microcosmo”, Olavo Bilac nos fala do amor por tudo o que existe ao nosso redor. Diz que, “Pensando e amando em turbilhões fecundos”, somos tudo: oceanos, primaveras, raças, cidades, línguas, povos e nebulosas, entre outras maravilhas. Encerra sua ode às belezas do mundo para declarar, nos versos finais, que somos “todo o cosmos em perpétuas flamas…Homem! És o universo, porque pensas. E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!”.
Bilac resume, em versos profundos, o amor em sua forma mais pura. Como o poeta, sempre fui impactada pela beleza de tudo à minha volta. Em duas fases da vida, porém, acredito que esse sentimento é vivenciado com mais intensidade: na infância e na velhice. Nos dois extremos da existência, somos capazes de experimentar esse tipo de encantamento de maneira mais intensa e prazerosa. No primeiro caso, movidos por curiosidade e pela felicidade de um eterno descobrir. No segundo caso, com a maturidade, se continuamos curiosos, somamos a essa motivação uma necessidade quase pragmática: guardar, na memória e na alma, as coisas belas sobre as quais pensamos e amamos “em turbilhões fecundos”. Guardar, antes da partida, o sorriso dos filhos, a voz do neto, o voo dos pássaros sobre nosso telhado, o cheiro do café, os olhos do poeta e seus versos; sentir a força de uma frase única, que brota no meio da insônia, como convite para começar um conto, tudo isso, é pontuado de tanta amorosidade que a vida, diante da certeza da sua impermanência, passa a ter contornos mágicos.
“Condicionar nosso afeto às expectativas (reais ou ilusórias) que temos em relação ao sentir do outro, fere de morte a poesia do amor”
No plano das relações pessoais, acredito que amar é muito mais do que devolver sentimentos recíprocos. Libertar o amor da ideia cultural de troca, faz renascer a pureza desse sentimento, em sua verdadeira dimensão espiritual. Amores correspondidos nos fazem muito felizes, mas nem por isso, amar sem ser amado deve nos entristecer. Porque, como já escrevi antes, na “Crônica do amor em paz”, o regozijo está em viver, pelo tempo que durar, intensa e intimamente o êxtase íntimo provocado por essa força imensa. Projetar nosso sentimento no outro, como “objeto” do amor, nos torna escravos do sentir. Condicionar nosso afeto às expectativas (reais ou ilusórias) que temos em relação ao sentir do outro, fere de morte a poesia do amor. Ao contrário, vivenciar o querer como um presente íntimo, maravilhoso e intransferível que, embora tenha nascido da interação com o outro, passa a habitar nossa alma, preenchendo-a com plenitude e encantamento, nos faz livres. Livres para o verdadeiro amor que habita em nós e nos faz plenos.
Essa visão amorosa do mundo e das pessoas que nos acompanham na jornada, torna tudo mais leve. A leveza, porém, só poderá ser sentida se exercitarmos, também, um olhar afetuoso sobre nós mesmos. Se, ao longo da vida, sobretudo, nos seus anos finais, formos capazes de ver, com os olhos do amor, nossa própria essência e tudo de belo que trazemos conosco; se formos capazes de compreender, com humildade, nossas virtudes e fraquezas; perdoar, com generosidade, nossos erros e comemorar, com alegria, nossos acertos. Pois não custa repetirmos o óbvio: só quem ama e compreende a si próprio é capaz de amar e compreender o outro. Porque como nos ensina Nietzsche, na voz de Zaratustra, quando a “terra e a vida parecerem-lhe pesadas”, quem “deseje ser leve como uma ave deve amar-se a si mesmo”.
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