‘A boca é a dona da língua’, por Ravel Machado e Flecha Lemos

Quando lidamos com literaturas de Abya Yala/Améfrica Ladina/América Latina, entendemos que devemos tomar um cuidado ainda maior. Se nosso interesse é alargar o imaginário – que costuma ser pequeno – que temos desses territórios, consideramos imprescindível que as diferenças – mesmo quando elas causam similaridades – apareçam.

Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Corpoflor, 2022.

A boca é a dona da língua – pode parecer óbvio, mas num mundo em que as peças gráficas textuais, as normativas linguísticas preconceituosas que operam fazendo com que “uma língua” seja melhor que “outras”, sendo essa língua chamada padrão, muitas vezes nos esquecemos disso. a língua acaba servindo, então, como mecanismo de distinção social, racismo, lgbtqia+fobia e apagamento epistêmico. mas a língua surge na boca, é da boca, é com a boca. ou melhor, usando essas imagens corporais apenas como metáforas, entendamos aqui que quem faz a língua é sempre um corpo – e dessa forma também pensaremos nos gestos de todos os que usam uma língua e nos sinais que orientam as línguas de sinais. saber quais as bocas que andam falando o que ouvimos, escrevendo o que lemos, é importante. o trabalho da (elle/elu) edições y traduções vem sendo, desde seu início em 2023, travar uma pequena barricada linguística, tanto no sentido de quem são as línguas que estão falando como no sentido de como transportar uma língua para outra em um gesto que se aproxime mais de um beijo do que um tapa na boca, ou seja, que os fluídos entrelínguas possam correr.

Quando lidamos com literaturas de Abya Yala/Améfrica Ladina/América Latina, entendemos que devemos tomar um cuidado ainda maior. Se nosso interesse é alargar o imaginário – que costuma ser pequeno – que temos desses territórios, consideramos imprescindível que as diferenças – mesmo quando elas causam similaridades – apareçam. Ou seja, a língua standart [espanhol] será traduzida para a língua standart [português], mas aquilo que grita no meio dessas línguas será preservado como produção, como registro orgulhoso da impuridade das línguas, atravessadas de outras, como registro autóctone contemporâneo de muitas ancestralidades que vingam nesses territórios. Que se veja Santo Domingo em Santo Domingo Is Burning, que se veja Porto Rico em a pele do arrecife. Mesmo que ver estranhe, que o estranhamento seja um convite e não uma recusa. Acredito que uma editora de ótica LGBTQIA+ não conseguiria ter outra lógica. Para isso, precisamos mudar o pacto com as pessoas leitoras. Fazer um pacto onde a estranheza possa ser familiar. Em um exemplo mais nítido: não abandonar um livro quando surgir a palavra bugarrones, sem nenhum tipo de explicaçãomesmo que depois, em outras aparições dessa palavra no original, vão se acrescentando tons para que esses bugarrones possam ser um pouco compreendidos, mas sem deixarem de ser bugarrones. 

O livro No Truque, de Johan Mijail, é o melhor exemplo que temos para dar em relação à oralidade. Ele foi traduzido por Formigão e essa opção não foi por acaso. Johan escreve um romance em que a inteligência barrial é saudada o tempo inteiro, Formigão é um  poeta da quebrada paulistana – um poeta imprescindível para e na memória de muita gente vinculada à dissidência sexual brasileira -, sabíamos que precisávamos dele para construir o ritmo desse romance, para manter um tom que trouxesse uma ambiência sonora na leitura de uma escolha poético-política que é a de Johan, centralizar as chamadas periferias. Além disso, Johan e a personagem principal do livro, são pessoas trans extremamente nerds, e Formigão também o é. A oralidade enquanto política é essencial na construção do livro e isso fica mais nítido nessa cena:

“A senhora, que também tinha sido grossa comigo, volta e me traz um copo com água, me senta em cima de uma mureta de cimento pintado de preto. Me acaricia as costas com uma força maternal, e de uma sacola enorme ela tira uma vassoura, sete lenços, um tabaco e uma garrafa de rum que não demora para levar à minha boca. ‘Tome’, me diz, e, com um tom que invoca autoridade, acrescenta: ‘Com isso não se brinca, mocinha’. E continua, passando a tonalidades mais amáveis. ‘Você chegou e logo percebi que você estava confusa’, pronuncia tentando fazer com que seus lábios articulassem ‘perejila’ e ‘camiona’ , depois me explica, sem eu perguntar nada, que ela estava correndo da polícia de imigração. Isso devido ao fato de que sua tataravó era haitiana, mas era dela que, depois de três gerações, eles tiraram a nacionalidade dominicana. Queriam deportá-la, mesmo tendo nascido aqui. ‘O Massacre se passa a pé’, repete várias vezes, e agora é ela que toma um gole.”

Em um meta-texto em seu texto, Johan apresenta a sangrenta história de perseguição às pessoas haitianas em território dominicano. E, sem contar, apenas mostrando, ilustra isso nessas três expressões: “perejila”, “camiona” e “O Massacre se passa a pé”. Durante o governo do ditador Trujillo, as pessoas que circulavam na República Dominicana passavam, de fato, por um teste de oralidade que determinava suas vidas ou mortes. Entendia-se que pessoas provindas do Haiti tinham “dificuldade” para falar a palavra espanhola “perejil” (salsinha, em português), portanto, para entender quem eram as vidas matáveis, usava-se de suas línguas. As que falassem “perejila” eram consideradas haitianas, e, com isso, mortas. Esse massacre, que estima-se que matou cerca de 30 mil haitianes, é chamado Massacre de Perejil, e está melhor contado no livro “O Massacre se passa a pé”, de Freddy Prestol Castillo, publicado em 1978, que Johan coloca também na boca da senhora haitiana que lhe conta dos vestígios ainda vivos dessa política. Esse massacre foi explicitamente uma perseguição às pessoas negras haitianas e tinha em seu ideário pretensões de limpeza étnica e branqueamento da população da República Dominicana, e nós não o estudamos no colégio, assim como não estudamos a revolução haitiana (1791-1804). 

Em um livro como esse, portanto, entendemos que manter a relação com a oralidade de Santo Domingo é uma posição política, pois demonstra que não só a comunidade negra haitiana produz suas línguas, mas também a dominicana, argumento que entendemos que está implícito no pensamento da autora. No recente curso que demos no SESC 24 de maio, sobre literaturas trans y cuir latinoamericanas, também sublinhamos a importância da palavra pájara, em diferentes textos do território, como palavra para designar algo entre as bichas afeminadas e também as travestis. Manter pájara é manter a comunicação com essa história, assim como manter sapatão nas traduções ao espanhol também o é. A palavra pájara é utilizada tanto por Mijail como por Lemebel, no Chile. Então ela conecta experiências e historiografias desses territórios.

Nesse curso, que ocorreu com mediação de Fabian e por intermédio da importante escola que vem sendo a Brava em relação a aprendizagens coletivas de transformação social, deixamos um tempo para comentarmos sobre o que se espera de uma editora no Brasil. Com certeza, não somos exatamente nós: dois corpos trans segurando a barra de todo o processo editorial, na companhia dos bons conselhos do nosso conselho editorial e de todas as pessoas que botam fé no nosso trabalho, compram nossos livros, fazem parcerias com a gente, falam nossos nomes em espaço de importância, para que seja sabido: existe uma editorial focada em produções trans e cuir latino-americanas sem deixar o Brasil de fora no país – que vem contando apenas com o trabalho de pessoas trans desde seu primeiro respiro e que fomentou a literatura LGBTQIA+ brasileira em 8 países da vizinhança. 

Então, no tempo da visibilidade trans, deixamos o convite a todas as pessoas para conhecerem nosso trabalho para além da temática, para além da identidade. valorizar as intelectualidades e poéticas trans pode ser mais gostoso do que imaginávamos. e nessa editora tão compromissada com a vizinhança, vai ser uma alegria nos avizinhar de você.

Ravel Machado e Flecha Lemes são duas pessoas trans, editories e tradutories nesse sonho que constela tanta gente chamado (elle/elu) edições y traduções.

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