Kênia Marangão compartilha em entrevista para a revista O Odisseu sua experiência com a escrita e publicação do primeiro livro ‘O voo das libélulas e outros contos inflamáveis’ (Patuá, 2024).

Quem nunca sentiu aquela sensação de falta de ar, mergulhado até os últimos fios de cabelo em prazos, demandas, tarefas? Tudo vira rio e transborda à nossa volta, incontrolável. Mas como explicar que as cobranças nos sufocam com palavras cruas que não transmitem o afogamento que sentimos entre deveres e burocracias? Ou, ainda, quando queimamos sem fogo, parados no mesmo lugar?
Esse véu que separa o existente do imaginário é rompido na obra ‘O voo das libélulas e outros contos inflamáveis’, estreia literária da escritora e artista plástica Kênia Marangão, que narra o cotidiano de uma perspectiva fantástica, transformando o real em literário e trazendo ao leitor a catarse necessária para lidar com a vida. “Durante a leitura, somos capazes de vestir a pele de personagens, sejam eles parecidos ou completamente diferentes de nós mesmos, e experimentar suas sensações”, reflete Kênia, em entrevista para a O Odisseu.
Os dezoito contos que compõem a obra passeiam por aspectos que nos são bastante familiares, mas que por vezes deixamos de perceber, suprimidos pela esmagadora rotina. Do olhar direcionado para esses momentos que são comuns à vida, surge seu primeiro livro, no qual “os contos são vias para que essa mágica aconteça”, como a autora nos conta na entrevista a seguir.
‘Sou escritora e, sobretudo, leitora’, relata Kênia Marangão sobre a obra ‘O voo das libélulas e outros contos inflamáveis’

Bruna: Os contos retratam momentos específicos que revelam muito das personalidades e características dos personagens, em que sabemos o que é necessário a partir de apenas um acontecimento. É o personagem ali, naquele momento-conflito, que reflete muito de quem ele é. Como se deu a construção desses embates?
Kênia: Nossa vida é repleta de embates, somos expostos a situações-problema que nos impelem a decidir por uma entre muitas maneiras de agir e que pode ser também o relevar. São as atitudes, muito mais do pensamentos ou falas, que revelam a personalidade das personagens (penso que também das pessoas) para o mundo. É assim que existimos, em meio a embates que nos envolvem e lidando com eles como nos é possível. É assim também com todos os personagens.
Muitos defendem que não há livre-arbítrio, que somos levados pelo fluxo cotidiano e apenas respondemos da forma que foi ensinada ou repetindo o modo como pessoas do nosso meio respondem. Não menosprezo essas influências, mas acredito que a todo momento há uma decisão a ser tomada que, mesmo pequena, pode gerar um ato que leva a mudanças de perspectiva e altera futuros.
Bruna: Temos uma epígrafe com um trecho de Cem anos de solidão, e claro, lembrei da obra ao ler contos que apresentam o realismo mágico. Isso me fez emergir ainda mais nas cenas. Como você se inspira em autores como Gabriel García Márquez? De onde vêm suas inspirações e influências?
Kênia: Era adolescente quando li pela primeira vez ‘Cem anos de Solidão’. O livro foi um marco, ruminei a história e o modo como ela é contada por muito tempo, desde então, reli a obra algumas vezes. Na mesma época, Li a casa dos Espíritos, de Isabel Allende, mais tarde descobri outros autores como Oscar Wilde, Haruki Murakami, Socorro Acioli que acolhem o fantástico nos textos de forma brilhante. Fui influenciada por esses e outros autores que, com a inclusão de elementos impossíveis, mágicos ou surreais, nos tocam e, paradoxalmente, nos levam a uma compreensão mais exata de certas percepções e emoções. Quando se trata de arte, acredito que o pensamento racional é o caminho mais longo, e mais complicado, para o acesso de sentimentos verdadeiros. O espanto do imprevisível é um meio muito melhor.
Bruna: Ainda sobre o realismo mágico, vemos na obra os sentimentos mudando, tornam-se oníricos. O cansaço torna-se cinzas, o desespero torna-se libélulas, a cobrança é capaz de inundar. Como é o processo de transformar emoções em fantástico?
Kênia: Em geral, começo a escrever com uma questão que quero explorar e assim, durante o processo de criação, os sentimentos geradores vão se vinculando a objetos, ações ou formas materiais que os traduzem. Às vezes, o caminho é inverso, vejo algo ou acontece que me desperta inquietação e vou escrever.
Por exemplo, quando um vulcão entrou em atividade em La Palma, no arquipélago das Ilhas Canárias, fiquei hipnotizada pelas imagens. Passei dias acompanhando o avançar da lava sobre sobre os terrenos, vi quando as casas foram atingidas e a população fugindo com o que podia carregar. Escrever um conto ficcional foi a maneira que encontrei para destrinchar motivos de fixação naquelas imagens. Os contos não autobiográficos, não retratam experiências pessoais, são uma forma de abordar perplexidades do mundo real que só posso decodificar e descrever através da escrita e por meio do fantástico.
‘Esse processo de associação ocorre durante a escrita, não planejo previamente, apenas flui enquanto construo o texto’, conta Kênia Marangão sobre a escrita dos contos
Bruna: Em alguns contos, um cenário é recorrente: o ambiente escolar. Você acredita que sua experiência com o magistério reflete também na sua escrita?
Kênia: Tudo que a gente vive acaba por influenciar a escrita e o magistério é um ponto importante da minha trajetória. Minha mãe é professora e, como ela, também fiz “magistério”, que era como se chamava a formação técnica de segundo grau para professores. Depois, além do bacharelado em Artes Plásticas, cursei a licenciatura. Apesar de não lecionar há quase 20 anos, às vezes sonho que estou dando aula, sonhos bons. É mais raro, mas tenho ainda pesadelos com o lançamento das notas dos alunos e o preenchimento de cadernetas. Alguns trabalhos são meios de ganhar a vida (e não são menos importantes por isso!), porém, outros são profissões que a gente leva pelo resto da vida. Pra mim, é o caso do magistério e das Artes Plásticas.
Bruna: Além dessa relação, a sua trajetória como artista plástica reflete de alguma maneira na sua trajetória enquanto escritora? Como se dá essa conexão?
Kênia: Sim, até mais do que o magistério. Quem faz artes plásticas acaba desenvolvendo um olhar específico para luzes, formas e cores. Percebo luminosidades peculiares de regiões e climas, tenho memórias delas. Às vezes, me perco olhando árvores em busca do ritmo, direção e organização de folhas e galhos. Confesso que sou seduzida por certas cores, formas e harmonias que vejo sem procurar por elas. Vou a exposições, museus, vibro (sinto os pelos da nuca, braço, perna se arrepiando) quando vejo Kandisky, Miró, Magritte, Picasso, Rotko, Tomie Otake, Volpi, Krajberg… Já me disseram que meus textos têm aspectos táteis e descrições vívidas que colocam o leitor dentro da cena. Gosto demais desse recurso.
Bruna: ‘O vôo das libélulas e outros contos inflamáveis’ é a sua estreia na literatura. Como tem sido esse momento para você?
Kênia: Uma mistura louca de emoções e aprendizados. Eu poderia dizer que foi tudo tranquilo e muito lindo, porém quem já lançou, ou está prestes a lançar um livro, sabe do turbilhão de emoções. Fiquei super feliz quando meu livro foi aceito por uma editora conceituada, mas, logo em seguida, veio o medo de expor o que escrevi. É claro que a gente escreve para que os textos sejam lidos, mas o sentimento foi de que, com o livro publicado, ficaria visível e, portanto, vulnerável à opinião alheia. Pode parecer contraditório, porém, logo depois do lançamento, fiquei ansiosa por feedbacks. No momento, sinto a dificuldade de fazer com que o livro seja lido.
Descobri que, Infelizmente, o país perdeu 6,7 milhões de leitores entre 2020 e 2023 e a quantidade de pessoas que não leem é maior do que a quantidade de leitores. Contudo, tenho a esperança que a literatura seja “redescoberta”, não conheço melhor forma de acesso a cultura, sonhos, compreensões, empatia e diversão do que um bom livro.
Bruna: Você pensa em outros projetos que também apresentem temas presentes em “O vôo das libélulas e outros contos inflamáveis”, como o incômodo com a vida e as circunstâncias sufocantes presentes nas trajetórias dos personagens?
Kênia: Não sei se poderia escrever sem tocar em temas que traduzem opressões, dúvidas, embates e ressignificação. Tenho um romance em andamento que espero terminar entre o final de 2025 e início de 2026. Nele, a personagem enfrenta um dilema e faz escolhas dificílimas para transcender uma circunstância sufocante e ressignificar a vida.
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O voo das libélulas e outros contos inflamáveis, de Kênia Marangão
Editora Patuá, 2024
116 pp.

