Abdias do Nascimento já tratava de uma série de temas que estão em voga ainda hoje, diz o sociólogo Túlio Custódio

Doutor em sociologia pela USP, Túlio Custódio organizou a nova coleção de textos “Abdias, intérprete do Brasil” (Todavia). Ensaios e artigos que correspondem às três principais fases da atuação de Abdias do Nascimento.

O pensador, artista e político brasileiro Abdias do Nascimento. Foto: Folhapress (reprodução).

Dentro do pensamento negro brasileiro, diversos nomes se destacam, como Lélia González, Beatriz Nascimento e, claro, Abdias do Nascimento. Ativo no movimento negro desde a década de 1940, o intelectual iniciou sua trajetória na vida pública por meio do Teatro Experimental do Negro, coletivo vanguardista em trazer a perspectiva afro-brasileira para as artes cênicas. 

Nas décadas seguintes, Abdias se tornaria logo uma voz pertinente no cenário das lutas pelos direitos civis no Brasil. Ajudou a fundar a Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional de Mulheres Negras, primeiras entidades específicas para pensar a questão do trabalho, negritude e direitos das mulheres negras no Brasil. 

Também foi fundador do Jornal Quilombo, ainda na década de 1940 e, em uma extensão da Teatro Experimental do Negro, ajudou a pensar o Museu de Arte Negra. Nisso, percebemos que Abdias do Nascimento transitou por diversas áreas, sempre como um pensador crítico da sociedade brasileira e pensando a raça como fator fundamental (no sentido de fundante) do que se entende sobre cultura brasileira.

Isso é o que afirma o pesquisador e sociólogo Túlio Custódio, doutor em Sociologia pela USP e organizador da mais nova coleção de textos de Abdias do Nascimento: “Abdias, intérprete do Brasil: Textos sobre raça e cultura brasileira de 1940 a 1990” que acaba de sair pela Todavia. À revista O Odisseu, Custódio enfatiza a percepção do Brasil fundamentado na raça como uma perspectiva do autor em questão:

Eu acho que o que Abdias tem a mostrar às novas gerações de pesquisadores, e à população brasileira em geral, é um olhar para um Brasil que não é possível de se fazer entender e analisar sem considerar a questão racial. A questão racial é uma questão estruturalmente fundamental e eu acho que isso é uma contribuição da obra e da atuação do Abdias em todas as esferas que ele atuou.

‘A análise de Abdias do Nascimento sobre o genocídio é uma excelente contribuição para os novos pesquisadores’, diz Túlio Custódio

O sociólogo brasileiro Túlio Custódio. Foto: Wesley Diego Emes.

Ao falar de Abdias do Nascimento, Túlio Custódio coloca o autor agora em uma nova perspectiva: a perspectiva de intérprete do Brasil. Nos estudos da sociologia brasileira, tal alcunha foi dada a alguns pesquisadores e pensadores que se dispuseram a pensar as estruturas que fundaram o Brasil: como Sérgio Buarque de Hollanda (“Raízes do Brasil”) e Gilberto Freyre (“Casa Grande & Senzala”). 

Abdias seria, portanto, um autor que se dedicou a entender o Brasil, analisar profundamente as situações que nos trouxeram a esse lugar de tantas contradições. Túlio afirma que, para entender o Brasil, o intérprete não apenas se debruçou no estudo das artes negras, mas também transitou em diversas esferas do conhecimento:

De forma mais específica, eu acho que ele tem a nos mostrar não só a importância de olhar a cultura negra, as diversas manifestações nas artes, na música, nas religiões, como elementos de resistência, não de forma essencialista, mas como um movimento. Um movimento, inclusive, ajuda a tecer e a organizar o que a gente entende hoje como cultura brasileira. Ademais, entender criticamente alguns processos, como a maneira como o racismo se organiza e se reproduz no Brasil. A análise do Abdias sobre o genocídio é uma excelente contribuição para as novas gerações de pesquisadores.

Vale mencionar que Abdias do Nascimento foi um autor de vasta produção intelectual, de modo que o livro busca dar conta de pelo menos seis décadas de escrita. A seleção dos textos, segundo Custódio, passou pelo interesse de mostrar um panorama da obra desse pensador, focando nas suas três principais fases de atuação: o Teatro Experimental do Negro (1940-1968), o Exílio (1969-1981) e a fase Político-Institucional (1982-2006).

A escolha dos textos tem a ver com a minha pesquisa anterior, do mestrado, em que eu estudei o exílio do Abdias no contexto dos Estados Unidos. Assim, ela se deu na intenção de percorrer a trajetória de Abdias como um todo para que as pessoas tivessem uma noção de uma perspectiva mais ampla do que foi a contribuição do Abdias, conta Custódio.

O legado de Abdias do Nascimento

O pensador, artista e político brasileiro Abdias do Nascimento. Foto: Agência O Globo (reprodução).

Em tempos em que os estudos sobre a negritude e racismo no Brasil passam por um impressionante processo de expansão, é fundamental retornar aos fundadores do pensamento que nós estamos desenvolvendo hoje. Nesse sentido, a crítica de Abdias é imprescindível para garantir a profundidade que esses estudos demandam. 

Mesmo com uma produção que iniciou na década de 1940 do século XX, Abdias do Nascimento foi uma mente lúcida e que conseguiu compreender, numa época de pouco estudo sistemático sobre o tema, a dimensão do racismo na sociedade brasileira. Para Túlio Custódio, Abdias já falava, há décadas, alguns dos temas que ainda continuam relevantes:

Revisitar os textos do Abdias hoje é revisitar a tradição de um pensamento negro brasileiro crítico e radical (no sentido de ir à raiz) que nos permite pensar uma série de questões que ainda estão em voga hoje, como a questão do genocídio, as ações afirmativias e a necessidade de categorizar o racismo como crime.

“Abdias, intérprete do Brasil” surge então como um importante resgate da vasta de uma das principais referências sobre negritude no mundo inteiro. Um exemplar que vale ter na estante dos interessados em compreender, a partir dos estudos de raça, as raízes do Brasil. 

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Abdias, intérprete do Brasil: Textos sobre raça e cultura brasileira, de 1940 a 1990, de Abdias do Nascimento (org. Túlio Custódio)
Tradução de Tatiana Nascimento
Todavia, 2025
352 pp.

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