Bloomsday: Em 2025, o evento, devidamente intitulado “Telêmaco”, se repete de 10 a 16 de junho. E, com exceção do primeiro e do último dia, há duas sessões diárias de visita à torre. No momento em que escrevo este texto, os três últimos dias estão lotados.

Faltam cinco dias para o verão. Um grupo de banhistas se diverte nas águas da baía. Só que está fazendo uns 15 graus e não tem sol. A temperatura baixa não intimida os rapazes e moças que nadam no mar “verderranho” de Dublin, como definiu James Joyce, ao descrever a cor da água que reflete o céu eternamente nublado.
A poucos metros está a Martello Tower, hoje batizada com o nome do autor, para onde sigo com um grupo de excursão. É 16 de junho de 2016, data do Bloomsday, o único dia do mundo dedicado a um personagem literário. Na verdade, há uma semana toda de comemorações, com eventos que vão de encenações e leituras pela cidade a reuniões animadas de pessoas com trajes eduardianos em cafés e restaurantes.
Hoje em dia são mais de cem atrações. A programação de 2025 tem até aula de ioga, “Breath and Bloom: Of Fathers and Figures”, que se mistura com o Dia dos Pais, 15 de junho, domingo. O lugar escolhido para alongar o esqueleto é a Brighton Square, local do nascimento de James Joyce. “Nesse Dia dos Pais, retornamos onde tudo começou para uma celebração alegre, reflexiva e um pouco excêntrica da paternidade, da fisicalidade, e Ulysses”, informa o programa. “Ulysses pode não ser seu guia de bem-estar preferido, mas as meditações de Leopold Bloom sobre seu corpo e mente – seus exercícios de Sandow, seus momentos de autocuidado e dúvida – são janelas surpreendentes para a cultura do bem-estar inicial”, diz o texto informativo. A ioga no parque custa 10 euros, metade do preço da visita à torre.
Há uma semana toda de comemorações, com eventos que vão de encenações e leituras pela cidade a reuniões animadas de pessoas com trajes eduardianos em cafés e restaurantes
O passeio no Joyce Tower Museum, ponto de partida de “Ulysses”, onde Buck Mulligan se barbeia enquanto zomba de Stephen Dedalus, é um dos poucos da programação que ainda possui ingressos disponíveis. Em 2025, o evento, devidamente intitulado “Telêmaco”, se repete de 10 a 16 de junho. E, com exceção do primeiro e do último dia, há duas sessões diárias de visita à torre. No momento em que escrevo este texto, os três últimos dias estão lotados.

O ponto de encontro para a excursão foi o James Joyce Museum no centro de Dublin. Na porta, entre a concentração de pessoas que aguardava o tour, estava o autor irlandês, em carne, osso, terno, bigode, óculos redondos, bengala e chapéu, dando uma entrevista para a TV local.

O sósia ilustre é John Shevlin, que encarna Joyce todo ano nesta época. O chapéu preto que usa foi confeccionado por ele mesmo. Além de ator, Shevlin é chapeleiro, profissão que é uma tradição de família desde que seu pai abriu uma loja em 1960. Seu ateliê fica no Temple Bar. Shevlin é especializado em chapéus Panamá feitos com palha equatoriana tradicional, que, apesar do nome, não se originam no Panamá. Ao longo da semana, o sósia oficial do Boolmsday esteve em vários eventos. Este ano, John Shevlin vai além da presença corpórea. Ele aparece no documentário canadense “Family ReJoyce”, de Godfrey Jordan. A película integra a mostra cinematográfica do festival.
De volta a 2016, foram 15,8 quilômetros do James Joyce Museum até a baía de Sandycove. Levamos meia hora para chegar. Quase deu tempo para tirar um cochilo. Todos usamos chapéus Panamá, brindes dos bilhetes. Meu cosplay discreto não é páreo para quem encarna a época da cabeça aos pés, como Shevlin e outros participantes. E eles estão por toda parte, ao redor da torre e no centro de Sandycove.
Entramos no Joyce Tower Museum. Na primeira sala, no térreo, há fotos históricas, esculturas, edições especiais de “Ulysses” e de outras obras do autor, manuscritos, entre outros itens. Dois degraus acima, no próximo cômodo, depois de passarmos por um corredor estreito entre as paredes de pedra, há uma prateleira cheia de livros, uma vitrine com objetos usados por James Joyce (um violão, uma bengala e um colete de caça feito pela avó, com iniciais JJ bordadas pelo pai), um baú de viagem, uma poltrona e mais artigos que nos levam ao passado.
Agora, subimos vários degraus para acessar o andar seguinte, que dá uma sensação mais precisa de que estamos numa torre, na torre de James Joyce, na torre do capítulo de abertura do romance mais importante do século 20. A cama onde o autor dormiu algumas noites, convidado por Olivier St. John Gogarty, amigo e inspiração para Buck Mulligan, está lá, posicionada para manter-se o mais fiel possível às descrições do livro.
Bloomsday: O alter-ego de James Joyce, Stephen Dedalus, aparece no parque St. Stephen, cujo nome não tem nada a ver com o personagem, embora haja em Dublin uma série de locais e estabelecimentos que aludem ao universo de “Ulysses”
A mesa, que no livro é local de discussão sobre tomar ou não chá com leite, também está ali para borrar o limiar entre ficção e realidade, com cadeiras, xícaras e garrafas. Há mais ao redor, mas estamos ansiosos para acessar o último andar, o da plataforma circular de tiro, a céu aberto.
Venta um pouco. Ao contrário do que parece, tem espaço para todo mundo. Depois de espiar a vista em 360 graus subindo no parapeito, contrariando a recomendação da placa, nos sentamos nos paralelepípedos da base da plataforma para ouvir trechos do começo do livro. Garoa. Tudo para deixar nossa experiência o mais fiel possível. Atualmente, a coisa é mais animada, com direito a encenações no pátio em frente à torre.
Mas participamos de algumas encenações em outros locais. O alter-ego de James Joyce, Stephen Dedalus, aparece no parque St. Stephen, cujo nome não tem nada a ver com o personagem, embora haja em Dublin uma série de locais e estabelecimentos que aludem ao universo de “Ulysses”. Dedalus encena ao lado do busto de seu criador e é fotografado pelo público como se fosse uma celebridade.
Encontro Leopold Bloom pouco depois em frente ao James Whelan Butchers, um açougue artesanal popular da cidade. Ele observa o açougueiro nos oferecer uma bandeja com linguiças grelhadas que finjo comer. Sem graça de recusar, coloco um pedaço na boca, mas o sabor é desagradável para um meio vegetariano como eu, obrigando-me a, discretamente, cuspi-lo e jogá-lo fora. Ninguém percebe.


Sobre encarnar personagens da obra de James Joyce, eu mesmo banquei Leopold Bloom em meu primeiro dia em Dublin, na segunda-feira, no Davy Byrnes. No livro, Bloom entra no pub por volta da uma da tarde. Cheguei bem mais cedo, às dez e meia da manhã, mas tão faminto quanto ele. Havia pouca gente no pub centenário. Ninguém fantasiado. Escolhi uma mesa e me sentei perto da TV, que passava um jogo da Inglaterra contra o País de Gales. Uma garçonete apareceu com o cardápio e me ofereceu uma sopa de entrada. Eu queria o que Bloom comeu, sanduíche de gorgonzola acompanhado de uma taça de vinho de Borgonha. E é claro que tinha isso no menu. Foi o que pedi, além de uma água. O lanche veio com dois quadradinhos de manteiga irlandesa. Comi bem devagar para não apressar a experiência. A taça de vinho, também apreciei lentamente. Eu estava tentando recriar o mesmo “prazer contemplativo” com que Bloom faz a refeição. Já um possível clima introspectivo foi por água abaixo num diálogo breve com a garçonete, em que compartilhei meu “desejo” de me passar por Bloom. “Just like the book, right?”. Ela acenou positivamente e deu uma piscadela.
A organização alerta que o mergulho é “por conta e risco” do nadador, pois não há salva-vidas. A recompensa por entrar na água gelada? Uma reunião depois num café local, também por conta (e risco) do participante
Termino minha jornada turístico-literária na Meeting House Square, onde acontece o “Readings and Songs”. Há um palco e dezenas de pessoas sentadas em cadeiras dobráveis. O evento é uma mistura de leituras dramáticas de trechos do “Ulysses”, música ao vivo e performances cênicas.

Consegui carregar essas lembranças ao longo de nove anos, em parte, graças a um punhado de fotos que tirei da comemoração literária e, se a senilidade futura não me tirá-las, devem continuar por um bom tempo na minha cabeça. O mesmo não posso dizer do chapéu Panamá que ganhei no tour. Por não caber na mala, acabei deixando-o no hostel onde fiquei hospedado. Que arrependimento!
Algo de que não me arrependo é não ter entrado nas águas da baía de Sandycove, como Buck Mulligan e os banhistas corajosos fizeram. Falando nisso, desde 2024 o banho de mar perto da Martello Tower integra a programação do Bloomsday Festival. A organização alerta que o mergulho é “por conta e risco” do nadador, pois não há salva-vidas. A recompensa por entrar na água gelada? Uma reunião depois num café local, também por conta (e risco) do participante.
“Uma voz, melíflua e sustentada, chamava por ele vinda do mar. Dobrando a curva ele acenou com a mão. Chamava de novo. Cabeça média e marrom, de uma foca, bem longe na água, redonda.”

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