Carta só para Clara Baccarin

Para Clara Baccarin: Seu poema inverno, Clara, particularmente me toca. Sou, de novo, transportado aos laboratórios de anatomia de minha faculdade, em que as aulas mais frias, do que os próprios corpos, me queriam fazer ignorar histórias, medos e sonhos por trás de fêmures, artérias e tendões. Por trás das vísceras.

A escritora e poeta Clara Baccarin (Reprodução).

Clara,

em voo, te encontro. Por entre poemas-estrelas, farinhas do mesmo céu. Seu céu, no que há de beleza e infinitude. Uno os títulos de dois de seus livros, para o lembrete: não esquecer das vísceras

As verdes vísceras que te compõem uma poeta maior, com quem divido o privilégio de viver no interior do estado de São Paulo. Interior. Eis a chave.

A mim, também, a capital incomoda. O capital incomoda. Você bem define: “são paulo / sou palha / no palheiro”. É tudo muito igual, mesmo num mar de diferenças. E de indiferenças. 

Aí, então, você nos ensina a amar os olhos e os seus desvios para o que sempre nos obrigam a menosprezar. Importa a grandiosidade / das cebolinhas selvagens / crescendo no quintal. Importa não perseguir as flores / e ser toda a travessia. Importa a sorte de plantar rosas e ver nascer / trapoerabas serralhas dentes de leão

E nessa sua visita à cidade de Mário, você reclassifica um clássico, ousando com sabedoria: amar / verbo / invertebrado. Eu até consigo, veja só, te imaginar andando pelo Largo São Francisco, encontrando as velhas amigas, Hilda e Lygia.

A primeira, numa autodefinição, que, tenho certeza, a poeta da Casa do Sol quereria ter escrito: por gostar em mim / do que é parede e musgo / ferrugem e mudez

A segunda, em um conselho importante, feito o que ela recebeu uma vez de Clarice: tem que fechar a fuça / estufar o peito / pisar pesado / e não sair distribuindo / ‘bom dia’ / por aí.

Seu poema inverno, Clara, particularmente me toca. Sou, de novo, transportado aos laboratórios de anatomia de minha faculdade, em que as aulas mais frias, do que os próprios corpos, me queriam fazer ignorar histórias, medos e sonhos por trás de fêmures, artérias e tendões. Por trás das vísceras. 

Gosto muito do equilíbrio entre as tensões da vida que sua poesia oferece. Há dias em que alegre se constata não rezei / e chove. Mas tem dias / que só arruda. E gosto, também, de ver o jeito que ela cresce e amadurece. Se, antes, você apenas ensaiava o mergulho, agora você nunca abandona o pulo. 

A força da mulher, tão preciosa e crescente na literatura de nosso tempo, em você se mostra substância natural. Vital. Visceral. Obrigado pelo lúcido convite de lavar-se de todas as purezas para encarar os desníveis. De desarmar as engrenagens do que nos faz máquina. De não ter mais como querer resgatar / essa disposição de ser terra com cercas. Porque se você deixa / o dia te come

Recebe o carinho, o abraço e admiração deste sempre amigo,

Márcio

27-IV-2025

Sertão da Farinha Podre – MG

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Vísceras, de Clara Baccarin
Patuá, 2019.

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