No romance “A Contagem dos Sonhos” (Companhia das Letras, 2025), Adichie estabelece na tessitura textual uma rede de experiências das mulheres africanas que ultrapassa a “história única”.

Chiamaka, Zikora, Kadiatou e Omeologor são as personagens principais do novo romance de Chimamanda Ngozi Adichie (2025), “A contagem dos sonhos”. Todas estão na faixa dos quarenta anos e nasceram no continente africano, mas, em algum momento, tiveram contato com os Estados Unidos. Assim, a partir de suas vivências e percepções de mundo, são tematizadas pandemia, imigração, religião, relações românticas na contemporaneidade, maternidade, os desdobramentos da pornografia, corrupção e racismo.
No romance, Adichie estabelece na tessitura textual uma rede de experiências das mulheres africanas que ultrapassa a “história única”. Uma mulher nigeriana rica vive da mesma forma que uma mulher nigeriana com poucas condições financeiras? Uma mulher da Guiné Conacri possui a mesma cultura que uma mulher da Nigéria? Como é o olhar para o mundo de uma mulher africana que pode viajar e se deslocar com facilidade e de uma mulher africana que só quer sustentar sua filha num país estrangeiro? Como elas lidam com a religião? Com o ser mulher? Há o cuidado na construção dessas personagens, pois juntas elas dizem algo de uma coletividade, mas elas também são permeadas da sua jornada individual.
Chiamaka, que é o ponto de intersecção entre as histórias, nasceu na Nigéria. Sua prima Omeologor e uma das melhores amigas, Zikora, também. Por vir de uma família rica, teve a oportunidade de morar nos Estados Unidos, e se adaptou bem ao país. Através do seu olhar, narrado em primeira pessoa, vemos que ela idealiza excessivamente as relações românticas enquanto exerce o ofício de escrever relatos de viagem. Apesar do prazer que lhe dá esse trabalho, encontra dificuldades para a publicação de um livro sobre o tema, registrando como os editores esperam ver de uma mulher africana apenas histórias de dor e sofrimento:
Assim que ela disse “dificuldades”, esticando a palavra com reverência, enunciando-a com emoção, soube que Katie me via como uma intérprete de dificuldades. Ela estava dizendo: “A Somália ou o Sudão funcionariam também. Uma introdução mais geral sobre o que está acontecendo nesses lugares. As pessoas vão comprar o livro mesmo se não lerem; vão comprar para mostrar que se importam, não é?”
A Contagem dos Sonhos: Há o cuidado na construção dessas personagens, pois juntas elas dizem algo de uma coletividade, mas elas também são permeadas da sua jornada individual.

Zikora, por outro lado, anseia formar uma família tradicional e plantar pés firmes no mundo. Advogada bem-sucedida, vê tudo se transformar após um término abrupto. Reside também nos Estados Unidos e, por isso, precisa da ajuda da mãe, que ficou na Nigéria, para lidar com o novo momento da sua vida. O capítulo dedicado a ela é o que tematiza com maior profundidade a relação entre mãe e filha e os desdobramentos da maternidade.
Diferente de Zikora e Kadiatou, que figuram a partir da terceira pessoa na narrativa, Omeologor segue a mesma escolha de Chiamaka. Ela é de uma parte da família com menos posses, mas através do seu trabalho no setor financeiro consegue enriquecer. Após crises de consciência e o interesse pela indústria da pornografia, resolve fazer um estudo de pós-graduação nos Estados Unidos, mas de todas as personagens é a que menos se identifica com o país, tensionando os sentidos de imigração e do sonho americano. Além disso, sua jornada também se centraliza na crítica aos discursos liberalistas rasos, a profusão de termos não explicados e a frustração de não encontrar espaços frutíferos de debate:
“Assim que comecei meus estudos, falava várias coisas erradas, mas eu não sabia por que eram erradas e eles não me explicaram, pois até perguntar por que eram erradas era errado. Eles esperavam que eu soubesse. Bem-vindos ao mundo dos americanos santarrões” .
Adichie não se filia a uma tradição que busca elaborar um olhar homogêneo sobre ser uma mulher do continente africano
Por fim, nesse mosaico, temos Kadiatou, uma mulher da Guiné Conacri, que trabalha como faxineira na casa de Chiamaka e em um hotel de luxo. Seus primeiros anos de vida no país foram felizes, ao lado da irmã mais velha, Binta. Após uma série de desventuras na vida adulta, embarca para os Estados Unidos. Para ela, que se tornou mãe, a imigração é uma possibilidade de melhorar as condições financeiras por meio do trabalho e possibilitar uma educação de qualidade para a filha. No entanto, a personagem também passa por situações violentas, uma delas baseada em um caso real, mas aqui ficcionalizado por Adichie.
A narrativa, ainda que tenha como marco principal a pandemia, é repleta de rememorações não-lineares. Por meio delas, temos acesso ao mundo interior dessas mulheres em sua complexidade. Adichie não se filia a uma tradição que busca elaborar um olhar homogêneo sobre ser uma mulher do continente africano. Aqui as personagens são lacunares e convocam o leitor a refletir em conjunto sobre suas experiências. Elas amam, erram, brigam, romantizam demais, são duras demais, dóceis demais, e seguem tentando desbravar o mundo.
Os homens, apesar de aparecerem na maior parte do tempo em um lugar de pouca responsabilidade com os sentimentos das personagens, também evidenciam nossas fantasias sobre o outro. Há o silêncio, mas também o “não quero compromisso” que não foi escutado, que imaginou poder ser remediado. Além disso, com Chuka, homem com quem Chiamaka se envolve, também há um olhar sobre o amor que estamos dispostas a receber, em que ter paz pode se confundir com tédio.
Sonhar com o amor, sonhar com uma família feliz, sonhar com um país mais justo, com condições dignas de vida, com a justiça. Refazer os sonhos a partir do que os caminhos oferecem. Tornar os sonhos realidade. Se permitir, antes de mais nada, sonhar. É desse lugar que a multiplicidade dessas quatro mulheres aparece.
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A contagem dos sonhos, de Chimamanda Ngozi Adichie
Companhia das letras, 2025
Tradução de Júlia Romeu
424 pp.


Caroline Barbosa é graduada em Letras Vernáculas com língua inglesa, mestre e doutoranda em literatura e cultura pela Universidade Federal da Bahia. É autora de “Do que me afeta” (Mondru, 2023). Fala de livros no perfil @literarioafeto no instagram.
