A escritora manauara Myriam Scotti, autora de títulos como Terra Úmida (Penalux, 2021), escreve sobre o romance ‘Na voz dela’, da autora ítalo-cubana Alba de Céspedes.

Em Fragmentos de um Discurso Amoroso, livro para o qual costumo recorrer a fim de pensar criticamente a ficção, Roland Barthes descreve uma das várias experiências amorosas a partir do ponto de vista de quem ama na ausência do objeto amado, portanto, ama na solidão. Neste fragmento, o amor está profundamente marcado por uma assimetria entre quem parte e quem espera, entre quem deseja e quem permanece em suspensão, sempre à mercê da falta do outro. Esta figura da espera é, quase invariavelmente, associada ao feminino. Dessa maneira, a mulher é representada como aquela que sofre calada, tecendo sua dor como Penélope tecia seu luto. Quando Barthes afirma que quem ama na solidão dos dias transforma a ausência em prova de abandono, ele está falando sobre um modo de existir que se constrói em torno da falta — uma falta que, longe de ser passiva, é ativa, mobiliza, consome. Essa estrutura amorosa do sofrimento se faz presente também no romance Na voz dela, em que as protagonistas femininas, Eleonora e Alessandra, encarnam a figura da mulher que aposta tudo no amor — e por isso mesmo, perde a si mesma.
Na história, que pode ser dividida em duas partes,Eleonora e Alessandra, cada uma em seu tempo, se veem mergulhadas em relações que nunca lhes oferecem o retorno emocional que desejam. São mulheres que não amam de maneira leve ou partilhada: seu amor é totalizante, absoluto. E, justamente por isso, torna-se uma forma de servidão emocional. Tanto Eleonora quanto Alessandra (bem como a avó materna) abandonam seus estudos e seus desejos e qualquer possibilidade de uma vida autônoma para se dedicar inteiramente ao marido. Essa entrega, ao invés de aproximá-las da felicidade, aprofunda ainda mais o abismo do sofrimento. A presença dos homens, paradoxalmente, é também uma forma de ausência — estão ali, mas não as veem nem as escutam. Barthes nos ajuda a compreender esse processo: a ausência do outro, ainda que concreta ou simbólica, produz um campo de dor que estrutura o próprio discurso amoroso. A mulher que espera, que se oferece por inteiro, é também aquela que se anula. Assim como a amante de Barthes, as mulheres do romance de Alba de Céspedes se fincaram no lugar, presas a um amor que apenas as consome.
‘A presença dos homens, paradoxalmente, é também uma forma de ausência — estão ali, mas não as veem nem as escutam’, escreve Myriam Scotti sobre ‘Na voz dela’, de Alba de Céspedes
Além disso, as páginas denunciam o tempo todo o silenciamento das mulheres dentro do casamento. Uma vez casadas, Alessandra e Eleonora perdem o direito à palavra, à expressão de seus desejos, que passam a ser considerados “besteiras” diante da exigência social de que a vida doméstica e a maternidade bastem. A elas é recomendado ter filhos, não como realização, mas como distração: para que não pensem, não questionem, não aspirem a nada além do que a sociedade projeta como destino feminino. Esse silenciamento contínuo, tanto social quanto emocional, conduz a uma depressão profunda, enraizada no sentimento de incompreensão e isolamento. Elas sofrem caladas, como se o sofrimento fosse parte natural da condição feminina. O amor, nesses moldes, deixa de ser afeto para se tornar prisão — e as protagonistas, sem espaço para existir fora desse papel, adoecem em silêncio.
O romance de Alba de Céspedes deixa claro que, quando o amor se torna o único centro da existência feminina, o risco é o esvaziamento de si. Ao abandonar seus estudos e sua autonomia intelectual para se dedicar exclusivamente ao marido, Alessandra mergulha num processo de anulação que a consome por completo. Sua vida se estreita ao ponto de não haver mais espaço para desejos próprios, para uma identidade que exista além do papel de esposa. Essa entrega absoluta, longe de ser recompensada, leva a um sofrimento psíquico profundo, culminando em um desfecho trágico. Em consonância com Barthes, que vê o amante como alguém fincado na dor da ausência, Na voz dela revela o alto preço da espera e da idealização amorosa, especialmente quando essa espera define e limita a existência feminina.

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Myriam Scotti nasceu em Manaus. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Amazonas e é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Desde 2014, dedica-se exclusivamente à atividade literária. Em 2020, venceu o prêmio literário de Manaus com o original Terra Úmida, lançado em 2021 pela editora Penalux. Em 2021, foi finalista do prêmio literário Pena de Ouro com o conto Uso a palavra para compor meus silêncios. Em 2023, seu original de poesia Receita para explodir bolos foi escolhido para ser lançado durante a Festa literária de Paraty – FLIP, pela editora paulistana Patuá. Em junho e agosto de 2024, foi convidada para as Festas literárias de Araxá e de Paracatu. Em outubro de 2024, teve seu original de crônicas Tudo um pouco mal escolhido para ser lançado na Festa literária de Paraty – FLIP, pela editora Patuá. Se prepara para lançar Sol abrasador prepara sol fértil, pela editora Orlando.
Na voz dela, de Alba de Céspedes
Companhia das Letras, 2025
Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo
461 pp.

