‘O livro dificilmente caminha sozinho; o autor precisa conversar com os seus leitores’, afirma Itamar Vieira Junior na Virada Literária

O autor do best-seller ‘Torto Arado’ foi entrevistado pela jornalista da TV Cultura e escritora Joyce Ribeiro em painel da Virada Literária, em São Paulo.

Os escritores Itamar Vieira Jr e Joyce Ribeiro na Virada Literária. Foto: Danilo Moreira (O Odisseu).

É impossível falar de literatura brasileira contemporânea sem chegar ao nome de Itamar Vieira Junior. O escritor baiano, consagrado pelo romance ‘Torto Arado’ (Todavia, 2019), conversou com a jornalista da TV Cultura de São Paulo e escritora Joyce Ribeiro, autora de “Chica da Silva: romance de uma vida” (Planeta, 2016) e “Deixa enrolar: A história dos cachos no Brasil” (DBA Editora, 2018) no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Durante a conversa, Vieira contou sobre os bastidores da criação do livro, e os dois palestrantes refletiram sobre as nuances da profissão do escritor, que nos dias atuais, vai além do rigor e hábito da escrita e perpassa por uma disposição em encontrar-se com o seu público.        

O painel, intitulado “A última volta do sol”, encerrou a Virada Literária, realizada pela primeira vez em São Paulo, nos dias 24 e 25 de maio, como parte da Virada Cultural na capital paulista. O evento reuniu nomes icônicos como Leandro Karnal, Rosane Borges, Xico Sá, Silvana AZ, Andrea Del Fuego, João Silvério Trevisan, Luciany Aparecida, Paulo Lins e o coletivo de literatura periférica Slam do 13 para refletir sobre os caminhos da literatura, além de apresentações artísticas. A curadoria é do escritor, produtor e colunista da CNN Brasil, José Manuel Diogo, e do escritor, roteirista e colunista da Folha de S.Paulo Tom Farias que, inclusive, fez a abertura da última palestra. 

Itamar Vieira Jr demorou 20 anos para escrever ‘Torto Arado’

A consagrada edição brasileira de ‘Torto Arado’ que foi lançada pela Todavia é, na verdade, resultado de uma história que começou a ser escrita há mais de vinte anos. Itamar conta que a primeira versão do romance surgiu quando ele tinha por volta dos 16 anos. Até então, acostumado a escrever textos curtos, aventurou-se pela primeira vez a escrever um romance. “Ele veio muito das leituras que eu fazia nessa época, como ‘Vidas Secas’ [Graciliano Ramos], ‘Menino de Engenho’ [José Lins do Rego], ‘Terra do Sem-Fim’ [Jorge Amado], ‘Morte e Vida Severina’ [João Cabral de Melo Neto]. Mais tarde eu li ‘Grande Sertão: Veredas’ [também de Graciliano]. Essas obras me inspiraram, de alguma maneira, a escrever esse primeiro livro”, explica.

Depois de um tempo, Itamar decidiu abandonar a escrita dessa primeira versão, que já contava com o título atual. “Eu não tinha maturidade para continuar”, afirma. Durante esse período, embarcou no aprimoramento da sua jornada de estudos e profissional. Graduado e Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), dentre diversas atuações, Itamar chegou a trabalhar no Incra. 

Sua estreia na literatura foi com a coletânea de contos ‘Dias’, lançado em 2012 pela Caramurê Publicações. Mas, naquela época, Itamar sentia que a carreira do escritor não era para ele. “Quando me deparei com aquela rotina de ir para lançamentos e participar de eventos, pensei que não era algo para mim. Decidi continuar a investir nos meus estudos e comecei a fazer doutorado em Estudos Étnicos e Africanos”, conta. Quando decidiu pausar o curso, acabou escrevendo um outro livro de contos, “A Oração do Carrasco” (Mondrongo, 2017), que foi finalista do Prêmio Jabuti. 

Após sentir o vazio do tempo antes preenchido pelo doutorado concluído, Itamar resolveu desengavetar da memória a ideia de “Torto Arado”. O autor baiano afirma que esse intervalo de vinte anos entre as versões foi primordial para que o livro nascesse de fato. “Antes, eu me apoiava na memória da família e dos livros que eu tinha lido. Depois, quis a vida que eu fosse trabalhar no serviço público, e conhecer o Nordeste em profundidade. Toda essa vivência profissional só permitiu que ‘Torto Arado’ evoluísse e ganhasse densidade”, conta.

Na trama, as irmãs Bibiana e Belonísia vivem em uma comunidade rural no sertão da Bahia, marcada pela exploração e herança da escravização. Após um acidente com uma faca, uma das irmãs perde a língua, e as duas passam a compartilhar uma existência profundamente ligada. Cada uma segue caminhos diferentes na vida, enquanto enfrentam as dores e resistências de seu povo. A narrativa mescla realismo e religiosidade afro-brasileira para contar uma história de voz, silêncio e ancestralidade negra.

Após terminar a edição definitiva, o autor a inscreveu no Prêmio LeYa 2018, prestigiado concurso literário do grupo editorial português LeYa, e destinado a reconhecer romances inéditos escritos em língua portuguesa. “Eu não fazia ideia do que era o Prêmio, só queria mesmo era publicar o meu livro. Meses depois que enviei, saiu o anúncio que eu ganhei e ele foi lançado pela editora em Portugal. Confesso que viajei até de coração meio apertado, pensando, ‘nossa e agora, nem estou lançando no meu país, como vai ser isso, como o público irá recebe-lo?’. Fui cheio de receios, mas deu tudo certo”, relata. 

“Quis a vida que eu fosse trabalhar no serviço público, e conhecer o Nordeste em profundidade. Toda essa vivência profissional só permitiu que ‘Torto Arado’ evoluísse e ganhasse densidade”, conta Itamar Vieira Jr na Virada Literária

Após o lançamento pela LeYa, em 2019, o escritor começou a trabalhar para fazer o livro chegar ao Brasil, quando a editora Todavia acolheu a obra e a lançou ainda naquele ano. Joyce perguntou se esse caminho inverso de sair primeiro no exterior para chegar ao Brasil pode ser ajudado a despertar o interesse nele. “Acredito que sim, ajudou a viabilizar a sua publicação aqui”, confirma. 

Até o primeiro semestre de 2023, Torto Arado já havia alcançado mais 700 000 exemplares vendidos. No final de 2024, a editora LeYa comunicou em seu site que o romance tinha sido traduzido para 29 idiomas e que, sozinho, havia atingido mais de 1 milhão de exemplares vendidos globalmente. Ainda pela Todavia, Itamar publicou a coletânea de contos “Doramar ou A Odisséia” (2021) e o romance “Salvar o Fogo” (2023). 

Coincidentemente, no dia do painel, a Folha de S.Paulo divulgava a lista dos melhores livros do século 21. Na eleição, que contou com a participação de 100 especialistas como críticos e escritores, incluindo o próprio Itamar, “Torto Arado” foi o vice-campeão, atrás de “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. Um participante da plateia perguntou ao escritor baiano a sua opinião sobre essa lista. “Lembro que indiquei Cinzas do norte [Milton Hatoum], O Avesso da Pele [Jéferson Tenório], Um Defeito de Cor e Olhos D’água [Conceição Evaristo]. A única coisa que não poderíamos fazer era, obviamente, votar no próprio livro [risos]. Eu também não sabia quem eram as outras pessoas que estavam voltando. Acredito que listas como essas são retratos de um momento e também um recorte do júri que está ali, o que não quer dizer que os leitores vão concordar com todos os selecionados”, comenta.

O romance já ganhou dois musicais, um no exterior, chamado “Depois do Silêncio”, dirigido por Christiane Jatahy e que, segundo o autor, passou por 17 países. O segundo é nacional “Torto Arado” que estreou no fim do ano passado, criado por Elísio Lopes Júnior, Aldri Anunciação e Fábio Espírito Santo, e que está em cartaz pelo país. “Chegaram a me convidar para colaborar com os dois, mas eu declinei por falta de tempo. Mas, de qualquer forma, eu estava confiante nos dois casos sobre o que iria sair”, contou. Existe, ainda, uma versão em cinema que está em andamento. “Vamos ver se daqui a alguns anos conseguem tirar do papel e levar para o espectador. Também fui convidado para colaborar, mas também preferi declinar por questões de agenda”, explica. 

Chica da Silva: uma fonte inesgotável

Além de entrevistar Itamar, Joyce Ribeiro também comentou sobre o seu livro “Chica da Silva: romance de uma vida”. A obra reconstitui a trajetória de Francisca da Silva de Oliveira, nascida escravizada no interior de Minas Gerais no século XVIII, e que ascende como mulher influente em Diamantina (MG), após se unir ao contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Com o olhar de Joyce, a narrativa desmistifica a figura conhecida do “conto de fadas” e revela a força, autonomia e desafios enfrentados por Chica, uma mulher negra que desafiou os padrões sociais de seu tempo. 

“O objetivo do livro sempre foi entender o olhar da Chica lá do século XVIII, mas associado ao que nós mulheres, sobretudo as negras, enfrentamos ainda nos atuais. Muitos desses enfrentamentos são similares, como o posicionamento na sociedade e a busca de voz. Todos esses elementos atuais me aproximaram da escrita e me fizeram brilhar os olhos, com vontade de realizar esse projeto. O livro foi uma conquista pessoal para mim, poder dar um outro olhar a uma história que já faz parte do imaginário popular. Chica é uma fonte inesgotável”, afirma.

“O objetivo do livro [Chica da Silva: romance de uma vida] sempre foi entender o olhar da Chica lá do século XVIII, mas associado ao que nós mulheres, sobretudo as negras, enfrentamos ainda nos dias atuais”, conta Joyce Ribeiro na Virada Literária

Joyce comentou que sempre teve a possibilidade de seguir pelo caminho da escrita literária, mas acreditava que iria realizá-la mais para a frente, quando já não estivesse mais em redação, que consome muito. “A história da Chica, já tão conhecida, e sempre esteve no meu imaginário desde criança. Quando recebi o convite da editora com essa oportunidade de dar uma outra visão, rapidamente mergulhei nessa ideia. Chica da Silva foi o meu segundo livro, ainda entendendo o meu processo de amadurecimento como escritora, num momento que chegou antes do que eu imaginava, me deixou feliz e ao mesmo tempo apreensiva em relação às críticas”, conta. 

Itamar e Joyce respondem a perguntas da plateia, nos momentos finais do painel na Virada Literária. Foto: Danilo Moreira (O Odisseu)

A hora de colocar um ponto final

Itamar e Joyce dividiram sobre as suas rotinas e dilemas como escritores. “Os meus três primeiros livros foram criados numa época em que eu trabalhava cerca de 40 horas semanais”, conta Itamar. “Chegava em casa, tomava banho e me isolava. Me desligava dos problemas reais para me concentrar em criar os da ficção. Nos fins de semana, escrevia pela manhã ou à tarde. Eu gosto de escrever sempre criando uma rotina, senão o projeto não avança”, afirma o escritor baiano. 

Já Joyce contou que escreveu a obra durante as madrugadas “Era um momento em que eu estava mais tranquila para escrever. Eu lancei o livro em 2016, e tive a minha segunda filha em 2015, então você imagina, era o horário em que a casa estava tranquila. Foi nessa faixa de horário que consegui dar continuidade de pensamento e costurar essa história. Eu também não sou uma pessoa tão diurna, produzo meus textos literários mais na parte da noite mesmo”, explica a autora paulista. 

Os autores compartilharam também as dores durante o processo de criação e finalização de um projeto literário. Itamar, por exemplo, afirma que após publicar uma obra, não consegue lê-la novamente, caso de “Torto Arado”. “A minha compreensão de literatura hoje não é a mesma da época que o escrevi, há quase dez anos. Um livro é sempre um retrato do tempo do autor e de quando foi escrito. Se eu o revisitar, eu vou reescrever a mesma história sempre”, conta. 

Já Joyce compartilhou uma insegurança ainda no processo de fechamento do livro. “O meu problema é que seguro o texto por muito tempo, antes de liberar para a editora, de compartilhar com outras pessoas para ouvir opiniões. Eu sofro com isso, especialmente com a reclamação de quem está em volta e espera uma continuidade. E até entender foi finalizado e que posso passar para frente, eu seguro demais. Eu, publicando no futuro, vou tentar dar uma acelerada nesse processo, depois do texto concluído, fechar o olho e deixá-lo ir”, comenta a escritora. 

Itamar afirma ser normal. “Até o último minuto, a gente está inseguro. O processo de criação do livro é longo, tem o editor, o preparador, os revisores, e cada vez que você relê a história, ela está mudando ali. É um trabalho que, se você não tiver cuidado, não terá fim. É preciso colocar um ponto final”, destaca. 

Os caminhos do livro

O escritor baiano afirma que a carreira literária atualmente extravasa a escrita e publicação do livro, mas envolve ter disposição para encontrar os leitores, celebrar a leitura e a literatura por meio da participação de eventos, para que possa se tornar mais conhecido. “O livro dificilmente caminha sozinho. O autor precisa conversar com os seus leitores. Ser escritor hoje é diferente dos tempos de Lima Barreto [1881-1922] e do Machado de Assis [1839 – 1908]. Imagina se eles tivessem redes sociais e interagessem com seguidores? É tudo uma demanda do nosso tempo. Acho que em boa parte dos casos, o livro encontra o leitor sozinho, mas essa conexão também pode ser feita quando o público tem a oportunidade de conhecer o autor, de conversar com ele, de se interessar pelas suas histórias”, pontua.      

“Até o último minuto, a gente está inseguro. O processo de criação do livro é longo, tem o editor, o preparador, os revisores, e cada vez que você relê a história, ela está mudando ali. É um trabalho que, se você não tiver cuidado, não terá fim. É preciso colocar um ponto final”

O autor de “Torto Arado” comentou que, assim que o livro foi lançado pela Todavia e veio a pandemia de Covid-19, em 2020, ele teve que suspender todo um cronograma de divulgação. “Ficamos quase dois anos dentro de casa. E aí as pessoas se voltaram para a leitura, recebi convites para participar de clubes de leitura e, honrado, me coloquei à disposição. Eu acho que isso foi importante para que o livro encontrasse mais público. Na época eu participava de mais de uma live por dia e confesso que às vezes era cansativo, mas foi essencial. Tudo isso contribuiu para o sucesso do livro. Se eu não tivesse tido essa disposição de interagir, teria sido diferente”, explica. 

Novos projetos

Ao ser questionado se está trabalhando em um novo livro, Itamar sorri, desconcertado, com cara de quem está aprontando, mas não quer contar. Ele afirma que percebeu que “Torto Arado” tinha alguns desdobramentos, já traçou um texto e está atualmente na fase de releitura e colhimento de opiniões da edição. “Não é uma continuação, porque são novos personagens, mas a questão central ainda é a relação de homens e mulheres com a terra. Essa relação é mais do que uma questão de trabalho, mas a que é nossa, de todo e qualquer ser vivo, que precisa de território para habitar e viver. Esse livro vai chegar no momento certo”, comenta, com sorriso misterioso. 

Itamar devolve a pergunta sobre futuros projetos para Joyce. A escritora paulista responde que, até o fim do ano, quer trazer um livro focado no público juvenil. “É uma publicação que vai falar com as adolescentes e com as meninas. Tem todo um cuidado, um desejo de que essa proposta de conversa chegue na mente de cada”, explica a autora.

Assim como Itamar com seu novo livro, Joyce comenta que tem vivido intensamente um processo de imersão. “A história que estou escrevendo atualmente está sempre comigo, no café da manhã, na redação; aí eu tenho que parar e pensar ‘agora não, estou fazendo notícia’. O jornalismo tem o seu papel técnico, a gente não pode se ver livre disso e temos que fazer acontecer, obedecendo o rigor técnico que é necessário. Na escrita literária não, há uma liberdade que me deixou solta, e vivo o momento”, diz.

“A história que estou escrevendo atualmente está sempre comigo, no café da manhã, na redação; aí eu tenho que parar e pensar ‘agora não, estou fazendo notícia’

Itamar concorda e afirma que, após essa fase, vive-se o luto pelo fim do livro. “Quando o livro vai para a gráfica, é hora de deixarmos aqueles personagens e aquele mundo com quem convivemos por um bom tempo”, pontua. Ele também compartilha de uma visão da escritora italiana Elena Ferrante, que os “livros, uma vez escritos, não têm necessidade de um autor”, e comentou sobre o que representa falar do livro publicado quando ele chega ao público. “Eu concordo com Elena que o livro basta, ele resume tudo que poderia ser dito, é a história que carrega esse sentido.  O autor não sabe de tudo que ele escreveu e nem tem domínio. Ele está vivendo um mundo tão intensamente que acho que ele não consegue manter a distância necessária para interpretar aquilo que ele criou. Aí são encontros como este, nas sessões de autógrafos, nas perguntas, em painéis como este, que a gente acessa as interpretações das pessoas, e que dão mais luz àquilo que nós escrevemos”, afirma o autor baiano. 

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