Virada Literária: ‘O corpo é o grande elemento subversivo da História’

Leandro Karnal, Rosane Borges e Simone AZ refletem sobre a relevância social, histórica e política do corpo em painel da Virada Literária, em São Paulo.

Da esquerda para a direita: Leandro Karnal, Rosane Borges e Simone Az na Virada Literária em São Paulo. Foto: Danilo Moreira (O Odisseu).

Já era noite quando cheguei ao descuidado e resiliente Centro de São Paulo que, assim como outros pontos da cidade naquele momento, vivia a atmosfera animada dos shows e outras atrações da Virada Cultural deste ano. Em outros tempos, provavelmente estaria em um desses shows movimentando o meu corpo entre álcool e euforia com meus amigos. Mas, o meu destino era outro: assistir ao painel do filósofo, escritor e historiador Leandro Karnal, escritora Simone AZ e mediação da escritora, jornalista e pesquisadora Rosane Borges no auditório da Biblioteca Mário de Andrade. Intitulado “As Estações do Corpo”, a palestra, que aconteceu no dia 24 e durou cerca de uma hora e meia, mergulhou nas camadas da existência física, política e íntima do ser humano, e refletiu sobre como os corpos são narrativas vivas de resistência e transformação.  

O painel foi um dos destaques da Virada Literária, realizada pela primeira vez em São Paulo, nos dias 24 e 25 de maio, como parte da Virada Cultural promovida pela prefeitura da capital paulista. Com curadoria do escritor, produtor e colunista da CNN Brasil, José Manuel Diogo, e do escritor, roteirista e colunista da Folha de S.Paulo Tom Farias, o evento reuniu nomes icônicos como Itamar Vieira Júnior, João Silvério Trevisan, Luciany Aparecida e Paulo Lins para refletir sobre os caminhos da literatura, além de apresentações artísticas. 

O corpo como construção histórica

Nome consagrado na filosofia brasileira contemporânea, Karnal subiu discretamente ao palco, sem esperar cerimônia ou apresentação, aparentemente com o corpo no “modo automático”, enquanto a plateia ainda se acomodava nas cadeiras e a hostess anunciava o painel. Todo mundo meio que se assustou quando viu o homem já acomodado e sorridente no palco. Simplicidade. Rosane e Simone também chegaram, na sequência, sob aplausos. 

Karnal abordou contextos teóricos e históricos de tentativas de controle de domesticação do corpo, uma construção histórica e instância mutável a ser coberta, domesticada, regrada, castigada e moldada de acordo com padrões.  

Em alguns momentos históricos, segundo o filósofo, o controle do corpo vem de um sentimento de culpa. “Santo Agostinho tinha se arrependido da sua vida dissoluta antes da conversão ao catolicismo, e o apóstolo Paulo de Tarso tinha se arrependido do seu passado de Fariseu, e ambos passam a falar de um corpo que precisava ser ‘domesticado’”, explica. Curiosamente, afirma Karnal, Jesus era mais aberto ao corpo alternativo [como Karnal denomina todos os corpos que não se enquadram aos códigos morais de uma sociedade] ao, por exemplo, perdoar uma adúltera. “De qualquer forma, um corpo sem culpa não sente medo, e nem necessidade de recorrer uma instituição que o perdoe.”  

O filósofo também abordou algumas formas de controle sobre diversos corpos ao longo da História, como a escravização da população negra. Outro ponto bastante citado foi a misoginia e o controle sobre o corpo da mulher, que até hoje é responsabilizada, por exemplo, pela agressão que sofre de assediadores. “No romance Clara dos Anjos [romance póstumo de Lima Barreto, lançado em 1948], basicamente, uma mulher negra é seduzida por um dos maiores canalhas da literatura brasileira, que a engravida e depois foge. O ‘mérito’ dele é ser branco, de classe média, e o delegado e a família sequer admitem a possibilidade de casamento [prática comum da época para esses casos]. E ao final desse romance, Clara diz à mãe que ‘a gente não vale nada’”, explica. 

Para Karnal, esse é um exemplo do corpo negro conquistado, que assim como costumava ser retratado em romances clássicos, tinha que estar disponível não só como para trabalho, mas também para diversão sexual da casa grande. Ele traça paralelos com a sociedade da época do romance aos dias atuais. “A nossa maneira de pensar política ainda é da época de Clara dos Anjos”, diz. 

“(…) um corpo sem culpa não sente medo, e nem necessidade de recorrer uma instituição que o perdoe.”

A construção de uma sociedade machista e que relega a mulher ao segundo plano perpassa, segundo Karnal, até mesmo no universo LGBTQIAP+. “Quando um homem gay abre mão da sua masculinidade e assume trejeitos femininos, isso é tratado como algo ainda mais grave do que ser apenas gay”. Ele também cita outras formas de violência contra o corpo de minorias, inclusive de intelectuais famosos. “Certa vez, Oswald de Andrade não aceitou as críticas de Mário de Andrade, escritor negro e gay, e então amigo, ao seu romance “Serafim Ponte Grande” (1933). Para agredi-lo, não usou qualquer questão do talento inegável de Mario, mas atacou-o usando termos racistas, como bonequinho de piche, e homofóbicos, como ‘Miss Macunaíma’ e ‘Maria’’, conta.  

Quem acompanha Karnal, pelo menos nas mídias sociais, já sabe que o filósofo consegue reunir embasamento teórico e uma língua afiada. Não foi diferente no painel. “Ou seja, Oswald de Andrade era um gênio da literatura e um completo filho da puta”, disparou, arrancando risos e aplausos.  

Outro exemplo do tratamento agressivo dado ao corpo lembrado pelo palestrante foram as marchinhas tradicionais de carnaval, em trechos que questionam a “a cabeleira do Zezé”, ou afirma que “sambalelê precisava de umas boas palmadas”. “Elas representam um trato violento do corpo que não se enquadra ao conceito de normalidade, dominado por uma visão machista do homem branco. Além disso, a noite e a rua são tratadas como pertencentes ao homem branco, mas se uma mulher se aventurar, ela não é considerada honesta e passível de punição“, explica.  

Leandro Karnal abordou a construção sócio-histórica do corpo (Foto: Danilo Moreira)

Outro ponto interessante do painel foi uma reflexão que Karnal fez sobre o foco excessivo de alguns autores em denunciar apenas dores e opressões, mas não exaltar no mesmo grau as conquistas de movimentos e revoluções de corpos oprimidos. Ele cita que, certa vez, fez uma crítica ao livro “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, que foi considerada herética. “Há vários casos de militantes que morrem, de movimentos de resistência que terminam tragicamente. Alguém que lê a obra e sente essa necessidade de fazer a diferença vai pensar ‘pra quê eu vou querer entrar nessa luta perdida?’”, questiona. Ele defende a existência de obras que façam denúncias de opressão, mas que mostrem também casos de sucesso de revoluções e movimentos de resistência como forma de inspirar pessoas.    

Por fim, Karnal pontuou a essência indomesticável do corpo. “O corpo é o grande elemento subversivo da História, dotado de instabilidade moral, porque domesticá-lo é uma tarefa impossível, ainda que isso vem sendo tentado de forma absoluta há milênios”, afirma.

O olhar salta dentre os sentidos do corpo

Rosane, mulher negra, transborda falas. Tem muito a dizer. Se teve uma palestrante ali que traduziu a habilidade do corpo em se libertar por meio da voz, essa é a jornalista, escritora e pesquisadora Rosane Borges, que foi mediadora do painel. Suas falas poderosas passaram um pouco da resiliência enfrentada diariamente pela população negra em um país com racismo estrutural. “Não importa quem a gente seja, nosso corpo [negro] já nasce codificado negativamente para a sociedade”, reflete.   

Rosane também traçou uma relação especialmente do impacto do olhar, que influencia na composição dos corpos em busca dessa captura. “Aí você percebe que vão se interessar pelo seu corpo se fizer uma plástica, emagrecer ou aplicar qualquer filtro de beleza para atender a um certo código”, conta. “Pelo menos do ponto de vista da filosofia ocidental, o olhar vai ganhando primazia sobre os outros sentidos, não é a à toa que a gente costuma utilizar a palavra cosmovisão; a gente fala de teoria, que vem do grego theorein, que significa observar; e não é à toa que a gente fala de fenômenos, que vem do latim phaenomenon e que representa o aparecer, vir à luz. Então há um investimento muito grande na visão, e que reduz o corpo reduzido às suas impressões por meio do olhar. Já nas culturas indígenas e africanas nós não temos uma cosmovisão, mas uma cosmopercepção”, explica.  

Rosane também chamou a atenção para a indignação seletiva em relação a corpos agredidos, equiparando a repercussão no Brasil de dois casos emblemáticos de violência contra corpos negros. O primeiro foi de George Floyd, morto em 2020 por um policial branco após uma abordagem truculenta. O fato reacendeu a discussão sobre racismo e violência policial nos EUA e gerou protestos em larga escala em todo o mundo. O segundo caso aconteceu no Rio de Janeiro em 2015, quando cinco jovens, Betinho (16 anos), Carlinhos (16), Wesley (22), Wilton (25) e Cleiton (18) saíram para comemorar o primeiro salário de um deles, e acabaram assassinados por 111 tiros disparados por policiais. “Nosso país parou na pandemia por causa do George Floyd, eu também me comovi, mas não tivemos o mesmo grau de indignação e revolva com 111 tiros em corpos negros”, conta. Ela lembrou do depoimento do pai da vítima de um dos rapazes, que disse que os tiros foram tantos, que desfiguraram as carnes e que não tinha corpo nem para enterrar.  
Rosane Borges chama a atenção para as agressões contra corpos negros (Foto: Danilo Moreira)

“Não importa quem a gente seja, nosso corpo [negro] já nasce codificado negativamente para a sociedade”

A jornalista também destacou alguns exemplos de agressões a povos relacionados a questões geográficas, a exemplo do caso de Lampeduza, no Sul da Itália, cujos pescadores, em 2011, foram proibidos pelo prefeito da cidade de resgatarem imigrantes norte-africanos que naufragavam em embarcações ao cruzarem o Mediterrâneo rumo ao país. “Isso foi fruto de uma construção que diz que o outro é inferior, não é humano, o que autoriza qualquer forma de destruição dele. E os agentes podem até dizer ‘não, não somos racistas, mas esses imigrantes são violentos e matam nossos filhos’”. Segundo ela, a partir de momento que se vive em um capitalismo no qual não há mais uma rede de proteção de direitos, passa-se a esculpir o outro sem escrúpulos, mas esse outro tem um corpo. “É isso que vivemos no mundo hoje. O sistema diz que não tem recursos pra ninguém, nem para os mais privilegiados, então como é que vai distribuir o bolo? Criando mecanismos de aporofobia e de morte ao outro, de tal forma que naturalizamos essa desumanização. É o corpo sendo usado como elemento cartográfico, no qual determinam onde você deve ou não estar”, afirma.

‘Escrevo com o meu não corpo’

Autora da coletânea “Beijo de língua no espelho: contos” (Quelônio, 2022) e do romance de formação “Dakota Blues” (Companhia das Letras, 2025) recentemente lançado, Simone AZ refletiu sobre a relação do corpo na atividade da escrita. Ela conta que o momento em que passa a escrever, entra numa fase em que não está mais em seu corpo. “Essa é a minha hora favorita nessa fase de criação. Fico imersa nesse outro ser que estou construindo e colocando no papel. Eu deixo de sentir fome, sede e qualquer coisa, eu me transferi inteira. Escrever pra mim é como viver o meu não corpo”, diz.  

Simone prossegue em sua reflexão, e afirma que seu corpo volta no momento em que precisa revisar e definir como as palavras no texto devem se articular. “Eu acabei de lançar um livro [Dakota Blues] que eu demorei nove anos para escrever, desde o nascimento da faísca original até o ponto final. Eu vi que parte desse corpo que escrevi, esse personagem, acaba sendo uma forma de expressão que vai além dessa matéria que está aqui agora falando com vocês, e é nesse além-corpo que eu gosto de pensar”, comenta. 

Em tempos que escritores, para vender livros, precisam aparecer e ser praticamente influenciadores nas mídias sociais, Simone expressou sua admiração por figuras que conseguem fugir à regra, citando, por exemplo, a escritora italiana Elena Ferrante, pseudônimo de uma identidade que é mantida em segredo. “A acho subversiva. Ninguém sabe direito como ela realmente é, ela não aparece, mas está ali, sendo admirada e deixando a sua marca”, comenta. 

Mas a escrita é só uma das formas de existência dos corpos, lembra Simone. Outras possibilidades de corpos existirem também são feitas por meio do desenho, atuação, canto, que pelo mundo, compõem um mosaico de celebração da diversidade. “É a representatividade que vai nos tirar de caixinhas e associações pejorativas relacionadas ao corpo como, por exemplo, que a menopausa é igual a decrepitude”, afirma.

Simone AZ refletiu sobre o significado do corpo durante o processo de escrita (Foto: Danilo Moreira)

A escritora entra no âmbito da repressão do corpo feminino ao longo dos tempos. “Eu, por exemplo, não sei quando a minha mãe entrou na menopausa. Não era um assunto falado, compartilhado. Agora é que converso com as minhas amigas”, explica. Ela também linka com a questão do envelhecimento. “Eu vejo que em ‘A paixão segundo G.H.’ [de Clarice Lispector], a forma como a mulher se transforma no contato com aquela barata, eu acho que a menopausa é um pouco isso, a transformação que acontece, enquanto estamos miudamente envelhecendo e, ao mesmo tempo, descobrindo possibilidades de viver”, reflete. 

“Escrever pra mim é como viver o meu não corpo”, diz Simone Az na Virada Literária

Ela afirma que o Brasil vive num corpo de país que foi torturado e torturador, que ficou mais de 20 anos sem eleger diretamente um presidente e com corpos desaparecidos até hoje. “Entendo que nossos corpos estão diretamente relacionados com o do nosso país e do planeta, que está maluco, onde as pessoas não podem envelhecer, não podem sentir contato humano, não podem falar, apenas olhar”, diz.   

Em meio a repressões e a um mundo repleto de ameaças ao corpo, Simone defendeu a importância de fazer arte como uma forma de resistência, inclusive por meio da alegria. Como exemplo, ela citou os Slams como um exemplo de expressão plena da liberdade do corpo e da alegria da poesia. “A alegria é uma obra prima, como diz Marguerite Yourcenar, e temos que resgatá-la de alguma forma, seja escrevendo, dançando, cantando, fazendo poesia. Podemos bordar o manto do mundo com leveza, com beleza e belos experimentos. A linguagem do corpo brasileira é muito mais rica e diversa do que é inclusive imaginada e, por isso, temos que juntar e mostrar a beleza dessa representatividade”, destaca.  

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